Sam Wilson, o Capitão América que precisamos mas não merecemos

por Lucas Fazola Miguel

O filósofo alemão G. W. Hegel, grande propagador do conceito de Zeitgeist (espírito da época), pontua que um artista é um produto da cultura na qual está inserido, de tal maneira que ele carrega essa bagagem em todo trabalho que realiza. Nos quadrinhos atuais, poucos escritores têm conseguido reproduzir com maestria o contexto da sociedade em que se está inserido, como Nick Spencer. Antes de chegar a Secret Empire, o autor deu início ao seu run com um personagem que naturalmente já renderia polêmica: Sam Wilson, eleito pelo próprio Steve Rogers como o novo Capitão América. O novo símbolo patriótico dos EUA no Universo Marvel era então um homem negro, e ninguém estava preparado para isso.

Sam Wilson e a discussão racial americana

As tensões raciais nos Estados Unidos continuam mais atuais do que nunca, a violência policial gerou movimentos como o Black Lives Matter, e eventos como a marcha racista em Charlottesville demonstram a urgência dessa discussão na sociedade norte-americana e no mundo como um todo. De acordo com o levantamento do portal “Mapping Police Violence”, negros representam 26% dos mortos por policiais no país, o que chama a atenção quando se observa que a proporção de afro-americanos na população dos EUA é de aproximadamente 12%. Diante desse problema estrutural, o trabalho de Spencer se mostra ainda mais relevante.

O run do autor na revista “Capitão América: Sam Wilson” se caracteriza, além do reconhecido alto nível narrativo, também por um senso de consciência social flagrante. Nas primeiras edições, Spencer já coloca o herói em contato com uma questão sensível do país: a imigração ilegal. Sam recebe um pedido de socorro em prol de um jovem de origem latina que auxilia mexicanos a atravessarem a fronteira, e que está em perigo por conta dos Filhos da Serpente, supremacistas anti-imigração e racistas. Pela defesa desses grupos minoritários, bem como pelo posicionamento político em questões humanitárias, o herói começou a ser chamado de “Capitão Socialismo” pelos próprios vilões e pelos conservadores nas mídias sociais, como se essas pautas fossem de Esquerda, e não de uma sociedade justa e igualitária.

As redes sociais, vale ressaltar, são um grande acerto do autor em sua trajetória na revista, uma vez que Sam Wilson está o tempo todo lidando com as repercussões de seus atos através delas, de forma que o leitor consiga sentir a pressão pela qual o herói passa, ao visualizar a constante perseguição que o Capitão sofre, da própria população. Ao longo do run, expressões como “devolva o escudo” viralizaram pela internet, assim como apelos de que “este não é o meu capitão”. A tensão em cima do novo Capitão não parava de crescer, e a progressão da narrativa alcança níveis absurdamente atuais, quando surgem os Americops.

Originalmente criado por Mark Gruenwald na revista Capitão América #211 (1996) da editora Abril, o conceito do Americop fora retrabalhado por Spencer e transformado em uma Iniciativa Privada de Segurança. Esta é financiada pelo milionário Paul Keane, que por sua vez é sustentado legal e socialmente por políticos e apresentadores de TV, todos sob a manipulação de Stevil, que já havia substituído o Steve Rogers original e age por debaixo dos panos para que Sam desista do cargo e lhe devolva o escudo de Capitão América.

Sam Wilson confrontou muito o conceito de Americops e como eles perseguiam a comunidade negra. Foto: Divulgação.

Os Americops se puseram então a levar a “Lei e a Ordem” para bairros de população negra. A violência perpetrada pelos “agentes da lei” atinge níveis alarmantes, e chama a atenção de Rage, antigo membro dos Novos Guerreiros, e um ativista ferrenho contra o racismo estrutural com o qual ele e os demais negros norte-americanos precisam lidar todos os dias. Os conflitos se seguem, o jovem herói entra em batalha algumas vezes contra os Americops, e Sam fica sem reação, dividido entre seu papel enquanto afro-americano e como herói nacional, sem saber qual atitude deve tomar. Até que, em um mal entendido, Rage é preso.

O jovem herói se torna ainda mais um símbolo para a comunidade, que vai às ruas protestar pela liberdade dele, encarcerado injustamente após se insurgir contra o abuso de autoridade dos Americops. Sam tenta ajudar o rapaz a sair da cadeia, sugere pedir ajuda a Peter Parker para pagar sua fiança e a Matt Murdock para defender seu caso, mas o jovem insiste que precisa passar por aquilo para significar algo para os negros que se espelham nele. Rage é colocado na prisão junto com bandidos que ele mesmo colocou lá dentro, é severamente espancado e deixado em coma, com extensivos danos cerebrais. Tal tragédia leva Sam Wilson a desistir do escudo, até que Stevil deflagre seu Império Secreto

Rage rejeita os privilégios que Sam Wilson poderia lhe conceder através de seus contatos, e prefere encarar o sistema penal como um cidadão comum. Foto: Divulgação.

Ao longo de pouco mais de vinte edições, Nick Spencer deu uma profundidade nunca antes vista na personalidade do outrora Falcão, traçando um caminho de aprendizado do personagem em relação ao fato de estar se tornando um símbolo para os cidadãos negros dos EUA. Entre as temáticas sociais entrelaçadas ao longo da narrativa, podemos observar as questões de imigração, vazamento de informações confidenciais, racismo, violência policial e revenge porn, funcionando como eixos que conduziam a trama em progressão, junto a Captain America: Steve Rogers.

Impressiona o domínio da cronologia do Capitão América que o autor demonstra, construindo seu run com personagens do cânone do herói bandeiroso, como o Apátrida,  Ossos Cruzados, os Americops, a Cascavel, os Filhos da Serpente, o Demolição, a ideia do “Capitão Lobisomem”, o Agente Americano (e ex-Capitão América) John Walker, a parceria com Rick Jones, entre outros, sem que se configure puro “fan service”, sempre coerente com a construção narrativa.

Como pano de fundo de sua história, Spencer constrói ao longo das edições – tanto dessa como da revista de Steve Rogers –  a escalada de força do fascismo nos mais diversos setores da sociedade, desde as redes sociais, passando pela programação de TV, pelas estruturas políticas e até por entre os super-heróis. A narrativa do autor começa a ser publicada nos últimos meses do governo de Barack Obama, e se conclui após a eleição de Donald Trump para presidente dos EUA. A exposição do cenário que propiciou a vitória do polêmico empresário não poderia ser mais clara do que na alegoria proposta por Spencer.

Leitura válida não só para quem quiser compreender as tensões raciais em solo norte-americano, mas também para enxergar o modo como nossa própria sociedade lida com a presença do racismo em nosso dia-a-dia. Soa clichê, mas Sam Wilson é o Capitão América que precisamos nesse século XXI, mas que muitas vezes não merecemos.

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