A Casa Grande pira quando a cultura pop enegrece

Vamos começar esse texto com um exercício de reflexão: pense numa princesa com seu lindo vestido, agora pense no casal de protagonistas da novela, imagine uma boneca, um rei imponente, um deus, uma heroína. Hum ok, eu diria que você imaginou todas essas figuras representadas por pessoas brancas, ou se deixou induzir pelo título e tentou equilibrar, pondo um negro, um asiático, ou nativo…

O fato é que, se em algum dia a raça alienígena Skrull tentasse invadir nosso planetinha azul, mas antes fizesse um workshop sobre os terráqueos, quase um “telecurso 2000”, através das nossas mídias, com certeza iriam achar que o planeta Terra é habitado 98% por pessoas brancas. Fomos construídos para nos identificar e aceitar uma normativa cultural caucasiana, que rejeita ou estereotipa o que estiver fora dessa caixinha.

Sim, a gente sabe que você pensou apenas em pessoas brancas. Foto: Marvel Studios.

A representatividade e o enegrecimento

Mas fique calmo, relaxa, isso não é um artigo antropológico. Vamos ao que interessa, vamos falar de heróis… sabe Dandara, a Rainha de Palmares? É incrível a importância que essa mulher teve e o que ela ainda repre… Ah, é pra falar da representatividade dos Super Heróis, aqueles de collant e capa? Ah sim, ok.

Então, todos sabem da real importância que a representatividade tem para qualquer pessoa. Porém, quando direcionamos essa palavrinha para o contexto da população negra, a REPRESENTATIVIDADE se agiganta e toma outras proporções, tendo um significado extremamente forte. Ela empodera, resgata e apresenta possibilidades e vários contêineres de sensações e sentimentos.

quem cresceu acreditando não ser digno ou belo, vendo suas irmãs e irmãos sendo mortos e oprimidos, desassistido, somente quem foi ensinado a odiar a si próprio, encarcerado, estigmatizado como bandido, apenas por terem corpos negros, consegue entender o que é se enxergar em lugares que nunca se imaginou estar, ocupando espaços que lhes foi negado a vida inteira.

Página da revista Capitão América: Sam Wilson #12. Foto: Marvel Comics.

A representatividade é algo muito profundo e complexo. Não nos basta ter uma ou duas pessoas negras numa tela de TV/cinema ou página de quadrinhos, queremos ser bem representados. Queremos ser muitos, ser bem construídos como personagens nas narrativas, longe de estereótipos que em nada nos ajudam, muito pelo contrário, que só limitam nossas oportunidades.

Somos negros, temos vivências muito parecidas entre nós, mas ainda existe as particularidades de cada um. Por isso é importante ter o conhecimento, a vivência, a experiência crível do que é ser negro, e creio que, se ainda hoje temos tantos estereótipos de pessoas negras, é consequência das pouquíssimas oportunidades dadas para criadores e produtores negros.

[Nota do Editor: um ótimo exemplo de oportunidade para criadores e produtores negros é Rodney Barnes, atual escritor da mensal do Falcão. Ele foi um dos roteiristas envolvidos em projetos como “Eu, a Patroa e as Crianças” e “Todo Mundo Odeia o Chris”]

Os heróis negros da cultura pop

Quando somos bem retratados encontramos algo que transcende, que mexe com a psique, que atinge de forma profunda, algo capaz de gerar reflexões e auto conhecimento. Reassistindo hoje a Super Choque, percebo o quão incrível essa animação era, as discussões abordadas, os problemas cotidianos que ele e todo jovem negro enfrentam, o que só o tornava mais crível e próximo de nós.

Recentemente, assisti ao episódio piloto da série do Raio Negro (Eita, série boa!) e fiquei eufórico, quase reprisei o sentimento que tinha com Super Choque na infância.

Minha gratidão ao Super Choque é enorme, um exemplo disso é o inesquecível episódio “Super Choque na África”, quando penso nele já me vem em mente o diálogo entre Virgil e Richie, sobre toda a alegria e a sensação de pertencimento que o herói tem de estar verdadeiramente em casa, na  África. Em minha opinião, essa é uma das cenas mais lindas de uma animação de super heróis.

“Richie: Virgil, como está a viagem?

Virgil: É incrível, tem gente negra pra todo o lado!

Richie: Cara, você está na África.

Virgil: Não, Richie! É que desde que eu cheguei aqui, eu tô me sentindo diferente, conectado.

Richie: Aí quando meu pai foi à Irlanda ele também ficou meio bobalhão…

Virgil: Não é nada disso… É como se eu carregasse um peso a minha vida toda sem saber. E agora ele sumiu!

Richie: Do que você está falando, cara…?

Virgil: Na África eu não sou um garoto negro, eu sou só um garoto, é… acho que é assim que você se sente o tempo todo, né…

Richie: É, eu acho que sim…

Virgil: E faz muito bem!!![…]”

OBS: Assista esse trecho a partir de 3min30:

https://www.youtube.com/watch?v=su4krCIBxHU&ab_channel=CanalCartoon

Hoje eu vejo a Marvel trabalhando muito bem seus personagens negros, dando visibilidade em seu universo e protagonismo. Todo esse intuito de investir em um universo crível e diverso só demonstra que a Casa das Ideias nunca esteve mais próxima do seu conceito primordial: retratar em suas narrativas personagens verossímeis, em quem o leitor pudesse se identificar quando lesse. Assim foi com o teioso e com os mutantes, há algumas décadas.

São muitos personagens negros, e o destaque dado à eles não é de grandes holofotes, mas sem dúvida é um destaque significativo. Não vejo a hora de poder ler um quadrinho solo da Monica Rambeau, do Dobra, do Marvel Azul, da Misty Knight (queria muito)…

Quando o Máquina de Combate morreu, seus irmãos se reuniram para prestar uma homenagem. Foto: Marvel Comics.

Mas prefiro acreditar que as coisas estão evoluindo. Vimos à iniciativa interessante da Marvel ao inserir um personagem totalmente novo em seu universo, o Mosaico. Tivemos também o mais querido, Miles Morales, o personagem que pra mim simboliza toda essa nova era de gente preta nos quadrinhos. Ele já nasceu recebendo uma enxurrada de críticas negativas e ataques racistas, mas hoje já se estabeleceu como o Homem-Aranha. Hoje em dia tem até fã dividido sobre quem é o melhor aranha.

Miles conquistou novos fãs e o amor de pretas e pretos, principalmente as crianças, que já sentem o poder dessa representação, pois podem se vestir como o herói sem ter que ouvir que “o Homem-Aranha não é negro”.

A propósito, o trecho a seguir foi retirado de uma entrevista que o criador do Miles Morales, o roteirista Brian Michael Bendis, deu em 2014 para o portal Vulture:

Vulture: O que você quer dizer? Como um aspecto multicultural “sempre esteve ali” sendo que o Homem-Aranha foi branco por décadas.

Brian Michael Bendis: Quando você se torna escritor do Homem-Aranha, do nada, todo dia, toda hora e em todo lugar, alguém não-branco – de todas as outras cores – te aborda e diz: “O Homem-Aranha sempre foi meu personagem predileto.” E a história por trás disso é “Quando eu era criança, meus amigos não me deixavam ser o Superman ou o Batman, por causa da minha cor. Mas eu sempre pude ser o Homem-Aranha e ele era o meu predileto, mas era porque qualquer um poderia ser o Homem-Aranha por baixo do uniforme, porque ele cobre da cabeça aos pés“. Não foi por isso que eu fiz um Homem-Aranha negro, mas depois disso me toquei que subconscientemente foi sim o motivo para termos o criado assim.”

O reflexo disso podemos ver no vídeo abaixo:

Existem outras figuras pretas fortíssimas dentro do universo Marvel. Temos o Luke Cage, que depois da sua série ganhou uma notoriedade absurda e muito bem vinda. Temos a mente mais poderosa e inteligente do universo, Lunella Lafayette, a Moon Girl. Pois é, a maior mente do planeta não é o Reed estica e puxa Richards, é uma menininha negra de 10 anos de idade.

Tenho uma irmã da mesma idade da Lunella, ela se apaixonou na mesma hora pela personagem e seu mascote gigante. Foi aí que eu vi que a iniciativa da Marvel é realmente efetiva, diferente do que alguns haters e racistas costumam dizer, minha irmã está se apaixonando por quadrinhos.

Essa menina, com cosplay de Moon Girl e o seu pai, fantasiado de Dinossauro Demônio, roubaram a atenção na última San Diego Comic-Con. Foto: Instagram da Marvel.

A trindade preta da Marvel

Pra encerrar, tenho à minha trindade preta dos quadrinhos. Tempestade, Pantera Negra e o Sam Wilson. Tempestade foi uma das primeiras personagens negras (se não a primeira) que conheci nas HQs. Apesar de eu não ser um dos maiores fãs dos mutantes, eu acredito que qualquer pessoa que leia essas histórias enxerga a Tempestade como uma das figuras mais importantes do Universo Marvel. Apesar disso, tenho o sentimento de que ela não foi totalmente explorada, penso que ela rende materiais acima das discussões mutantes.

Em termos de conquista e surpresa Sam Wilson foi de longe uma das melhores coisas que li na Marvel. Sempre achei o Falcão um personagem vazio, muito coadjuvante e sem vontades. Mas algo mudou, o personagem se mostrou mais rico e uma fonte de histórias incríveis. A fase em que ele assume o manto de Capitão América é uma das coisas mais maravilhosas que fizeram para o herói.

Pantera Negra, Tempestade e Falcão, a trindade. Foto: Marvel Comics.

As histórias têm peso e são atuais, ricas em discussões políticas, o que deixa claro que não tem como se omitir da política, ainda mais quando se é negro. Agora ele está sendo escrito por um cara negro, voltou as ser somente o Falcão, e vem ganhando uma atenção surpreendente e mais do que justa.

Ok, todos sabem quem esse ano tem uma pá de filmes bons de heróis pra assistir?

Mas, sinceramente, eu tô numa ansiedade descomunal para assistir a Pantera Negra. É tudo tão encantador… Wakanda é um lugar tão incrível e lindo, que dá vontade de morar lá.

O interessante disso tudo é finalmente ver a poderosa Wakanda ganhar vida, o país que é tecnologicamente avançado, o que me remete à nossa história, nossas ancestralidades, pois, mesmo fictício, há muitas semelhanças ao que a África foi antes de ser saqueada e explorada.

Mas, falando do Pantera, ele era o tipo de personagem negro que eu esperava ver nas mídias, ele é inteligente, bom de briga, rico pra caraca e rei… enfim, fora o fato dele conseguir fugir de uma pá de estereótipos, não tem como não se apaixonar por T’Challa.

Sempre gostei do personagem, quem me conhece sabe bem disso. Mas é preciso destacar a falta de opções de leitura do Pantera Negra aqui no Brasil. Com tantos relançamentos feitos pela Panini nos últimos anos, ainda não saiu nada relacionado aos trabalhos de Christopher Priest ou Reginald Hudlin. Apenas o material mais recente e pertinente à cronologia de Ta-Nehisi Coates.

O Pantera Negra de Ta-Nehisi Coates. Foto: Marvel Comics.

Hoje o personagem voltou a ter destaque, ganhou novamente um título próprio e começou a ser escrito por Ta-Nehisi Coates, jornalista, escritor, altamente politizado e filho de um ex-membro dos Panteras Negras, a série é desenhada por Brian Stelfreeze.

Não é à toa que, quando vemos uma preta ou um preto reagindo a alguma cena do filme, é uma euforia contagiante. Quando vemos crianças pulando em mesas, gritando de felicidade e se abraçando, por saber que vão assistir ao filme, sim, isso é à euforia da representatividade (vídeo abaixo). Um filme com o elenco quase 100% negro merece todo o carinho e atenção da comunidade negra, e creio que essa retribuição surpreenderá bastante.

E, por mais que certos grupinhos tentam por em prática uma ideia estúpida e imbecil de  sabotar um filme importantíssimo como esse, que transcende qualquer rixa idiota entre fãs de editoras e estúdios, não vai adiantar, esse filme significa muita coisa, coisas grandes demais para essas mentes pequenas.

P.S.: Não esqueci da Riri Williams, baita personagem importante, com um background pesadíssimo, porém real. Assim como a Lunella, Riri tem uma inteligência excepcional. Agora vem tendo bastante destaque e inspirando muitas garotas pretas.

Texto: Tales Borges

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