A relevância do Império Secreto e o contexto brasileiro

Este artigo não é uma resenha ou análise do trabalho do escritor Nick Spencer nos títulos do Capitão América, mas uma série de reflexões sobre a sua importância e seu contexto dentro do Universo Marvel, dos Estados Unidos e – por que não? – do Brasil.

Também não abarca apenas o Império Secreto, já que o evento nada mais é do que a culminância de todo o run de Spencer nos títulos de Capitão América. Não dá para tirar proveito máximo da saga sem acompanhar a jornada desde o princípio.

Polêmica desde o começo, a história foi iniciada por Nick Spencer lá em Captain America: Sam Wilson #1 e passou por momentos difíceis dentro e fora da ficção, inclusive com o episódio de fãs queimando Captain America: Steve Rogers #1 com a fatídica revelação de que Steve Rogers era agente da Hidra. Tais leitores se diziam militantes anti-nazismo e anti-propostas-diferentes-para-personagens-clássicos. Foi-se o tempo em que eram os nazistas que queimavam livros.

https://twitter.com/edenburned/status/860946723451146245?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E860946723451146245&ref_url=http%3A%2F%2Fwww.vulture.com%2F2017%2F06%2Fmarvel-hydra-captain-america-nick-spencer.html

Enfim, 2018 é ano de eleição aqui no Brasil e é impossível não falar desta saga sem dar uma pitadinha no nosso momento político atual. Ainda mais com o Capitão Fascista usando uma armadura verde-e-amarela no final da saga.

Resumo rápido

Steve Rogers é mau que nem o pica-pau, era secretamente um fascista e dominou os Estados Unidos num plano que envolveu intrigas e manipulações. Sam Wilson foi o Capitão América nesse período, mas passa por momentos difíceis nesse papel.

Uns dizem que ele se posiciona demais. Ele afirma lutar por uma nação que acredita. Que seria hipócrita se não o fizesse. Luta pelo oprimido e por quem não consegue lutar sozinho. É uma mistura de Superman da Era de Ouro com Steve Rogers em alguns de seus momentos de maior rebeldia anti-establishment e uma pitada de discussões sobre racismo, imigrantes e outras questões relacionadas a minorias políticas.

Reforçando: é importante ler as edições dos dois Capitães América para entender essa história, Sam Wilson e Steve Rogers. Império Secreto é praticamente o ápice do run dele e perde-se muito se não tiver acompanhado toda a construção.

O Pré-Império

Muitos roteiristas ignoram o que acontece no resto do universo em prol do seu próprio título. Outros, consideram demais as outras revistas e acabam deixando suas próprias incompletas ou inconsistentes. Os casos variam e alguns leitores preferem um tipo de escritor em detrimento ao outro. Como tudo hoje, causa discussão e atrito. Spencer consegue fazer o meio termo e se aproveitar dessa divisão.

Voltando um pouco no tempo: Guerra Civil II foi uma saga mal aceita tanto pela crítica quanto pelos fãs. Ficou à sombra da primeira e não atingiu as expectativas. Independente da qualidade da saga original, a continuação serviu para dividir o Universo Marvel política e ideologicamente. Criou uma instabilidade no mundo e uma falta de perspectiva de futuro. Uma desconfiança nas figuras de autoridade e uma necessidade quase nostálgica e muito ingênua de uma figura que pudesse trazer união.

É importante relembrar que desde o finalzinho de 2010, têm ocorrido no mundo uma série de movimentos políticos de luta por direitos, como a Primavera Árabe, os protestos Occupy e, um pouco mais tarde aqui no Brasil, as Jornadas de Junho de 2013.

Todos esses movimentos têm causado um rebuliço e um mal-estar com o momento político no mundo inteiro. A perversão desses movimentos e apropriação de um sentimento de revolta tanto pela direita quanto pela esquerda, tem causado uma inquietude muito grande. De lá para cá, os debates se tornaram mais violentos e apaixonados e ser neutro ou não gostar de política se tornou sinônimo de algo feio e alienado.

Pois bem, Spencer consegue pegar esse sentimento do mundo real e aplicar ao pós-Guerra Civil II, tornando suas consequências mais relevantes e interessantes do que a saga em si. Com sutileza e sagacidade, transmite esse momento de turbulência política para os mascarados de collant. Com um sentimento enorme de impotência diante de uma máquina sistêmica que parece não funcionar mais, a única opção restante é a busca por figuras messiânicas para resolver conflitos históricos acumulados.

E quem melhor para resolver esses conflitos do que um rosto que todos conhecem e confiam? Quem melhor do que uma figura carismática que parece refletir todos os sentimentos de uma nação e trazer uma segurança nostálgica de que “no meu tempo era melhor”? Esse parece um trabalho para o Capitão América.

Stevil e o perigo do messianismo

É fácil colocar todas as suas fichas em uma figura pública e achar que nossos problemas podem ser resolvidos com este ou aquele político no poder. Ou até o oposto, que aquela única figura no executivo é responsável por todos os problemas estruturais que corrompem o Estado e a nossa vida. Stevil – a versão secretamente fascista de Steve Rogers – nos mostra como isso é perigoso.

Durante as edições dos Capitães América e outras revistas, algumas crises de grande proporção acometeram os Estados Unidos – mais tarde descobriríamos terem sido articuladas. A revolta dos vilões em Pleasant Hill, o desastre em Nova York e uma invasão Chitauri acontecendo ao mesmo tempo criaram uma atmosfera de medo e urgência no mundo. Os heróis estavam divididos demais para lidar com tantas crises tão imensas em escala.

O governo americano havia, há pouco, aprovado uma Lei que previa o controle total do país para o comando da S.H.I.E.L.D. em caso de crises graves. Quem presidia a agência de defesa no momento era justamente o Stevil.

A teórica política Naomi Klein, em seu livro A Doutrina do Choque, analisa a estratégia desenvolvida pelo economista liberal Milton Friedman, de que momentos de instabilidade e crise de grandes dimensões são os mais ideais para se aprovar medidas polêmicas ou impopulares.

A tese de Klein é facilmente aplicável ao Brasil, que em diferentes momentos de sua história passou por golpes de Estado durante momentos de turbulência (o Golpe de 1930 de Vargas, o Golpe Civil-Militar de 1964, e em 2016, o “Golpe Branco” ou “Golpe institucionalizado”, como chamam alguns autores, resultante do recente impeachment da presidente Dilma Rousseff e posse do atual presidente Michel Temer, etc).

Como a arte imita a vida, a crise tripla no Universo Marvel levou a medida emergencial recém-aprovada a ser efetivada e os Estados Unidos entraram num Estado de Exceção sob o comando de Steve Rogers. Com a S.H.I.E.L.D. no poder, o país entrava em um regime militar.

Assim como outras nações no século XX, os americanos cometem o erro de depositar sua fé numa figura salvadora que vende a ilusão de poder resolver todos os seus problemas de uma só vez. Em vez de se unir e organizar socialmente para combater os problemas, tentaram se isentar dos problemas colocando uma figura responsável numa posição de poder. Uma figura carismática, mão de ferro, com o domínio das Forças Armadas e extremamente moralizadora.

Mais para frente, durante a saga, revela-se que todas as crises foram planejadas pelo próprio Stevil. Uma estratégia certeira: propagar ostensivamente o medo com o objetivo de convencer a população a abrir mão da sua liberdade em prol de uma falsa sensação de segurança. Um discurso amplamente utilizado em episódios como o 11 de setembro, nos Estados Unidos, ou a “intentona comunista” aqui no Brasil.

Existem figuras políticas que hoje mesmo estão utilizando dessa estratégia. Claro que essa tática de Stevil é uma crítica direta à plataforma eleitoral de Trump, com respostas agressivas às ameaças que o próprio governo cultivava, mas também é muito pertinente aqui no Brasil. Não só em relação às medidas impopulares do governo Temer (como a reforma trabalhista ou o congelamento dos repasses públicos para educação), mas também figuras políticas que despontam cada vez mais.

O discurso de medo rapidamente se transforma num discurso de ódio e cria uma plataforma cativante para um eleitorado perdido que não parece saber para onde mirar as próprias frustrações e sentimento de impotência que a descrença nas instituições trazem. Políticos brasileiros também sabem capitalizar em cima de tal atmosfera que ajudam a criar.

E isso não é um fenômeno exclusivo da extrema direita. A partir da prisão de Lula e a impossibilidade dessa figura messiânica da esquerda voltar ao poder, há um fenômeno de desesperada tentativa de união sob figuras com certo carisma na esquerda, como é o caso de Ciro Gomes. Eleitores deixam de votar em candidatos nos quais acreditam para votar em personagens políticos que supõe ter mais chance de impedir que a oposição chegue ao poder. É o voto que parte do medo do pior e não de uma esperança do que há por vir.

Essa crise política acarreta, ainda, na crença no sujeito anti-político. Figuras como o Dória, o prefeito viajante, e o MBL dão ênfase à ilusão do sujeito “não político”. Aquele indivíduo que, por não fazer parte diretamente do sistema, poderia vir de fora e magicamente resolver todos os problemas estruturais. É uma outra forma de messianismo que ignora que não existe sujeito não político.

E o Império Secreto trata justamente de como a esperança, de como a luta ativa por um modo de vida melhor, é o caminho mais honesto a ser seguido. E de como o medo pode levar aos lugares mais sombrios, tanto individualmente quanto socialmente. A saga se torna um protesto apaixonado, uma declaração de amor à esperança de uma sociedade melhor. De não se entregar ao medo e se contentar com o que tem para hoje, mas de suar e sangrar pelo que realmente acreditamos ser o melhor.

Todo esse discurso de esperança contra o medo é personificado no personagem de Sam Wilson. Mesmo depois de ser motivo de chacota e de ser recusado pelo povo que jura proteger, o Capitão dos oprimidos não se deixa desistir. Acredita em uma nação melhor e luta por ela. Luta contra o conformismo conservador que ressurge e que tenta agarrar o poder com todas as forças.

Simplesmente entregar o poder por medo de os problemas serem muito grandes, de não conseguirmos lidar com tudo de uma vez, nos leva a cultivar Stevils na vida real. Sujeitos que, uma vez no poder, podem gerar medidas e tomar decisões com as quais não concordamos, mas que nos conformamos em prol de combater aquele grande medo que nos tomou a princípio.

Não há como ignorar a relevância de Império Secreto sem apontar o quão palpáveis são as semelhanças com o nosso momento político atual. Com a ascensão de uma forte onda conservadora e o subsequente abandono de nossas ideologias para nos agarrarmos ao “menos pior”. Não há nada mais perigoso do que abandonar os progressos sociais e se contentar. Assim, acabamos aceitando medidas que não concordamos por serem menos piores do que aquelas outras que discordamos totalmente.

O Império Secreto não é tão secreto assim.

A hipocrisia fascista

Talvez um dos maiores trunfos do Império Secreto seja mostrar o ponto de vista de Stevil. Explorar que não é tão preto-e-branco. Que não é mais “mocinhos contra bandidos”, Capitão América (americano) contra Caveira Vermelha (nazista). Mas que o discurso do vilão chega a ser, em alguns momentos, atraente. Ou no mínimo compreensível.

O objetivo não é dominar o mundo simplesmente para assumir o poder supremo. Stevil também luta pelo que acredita e acredita piamente que aquilo pelo que luta é a melhor opção.

O Capitão América é o representante máximo do chamado Sonho Americano. Transformar o personagem no líder supremo de um movimento fascista é uma forma de demonstrar que o discurso interno de país das oportunidades, terra da liberdade e de retidão moral dos Estados Unidos, já não faz mais tanto sentido hoje e precisa urgentemente de uma revisão.

Ainda mais quando o discurso vem de um dito herói carismático e moralmente santificado. Quando suas palavras são sempre lúcidas e bem fundamentadas. Quando ele luta contra um inimigo externo, como o Caveira Vermelha, que o faz parecer bom e caridoso com seu povo. E quando ele afirma que tudo o que faz é para fortalecer sua nação.

Em Império Secreto: Ômega, a última edição da saga, somos apresentados a todos os valores de Stevil e as razões pelas quais ele fez o que fez. E ele lembra o tempo todo que ele não fez sozinho. Que foi colocado no poder pelo povo. Que ele deu voz a uma parte do povo que não se sentia representada. Novamente o efeito Trump abrindo espaço para discursos neo-nazistas e de supremacismo branco nos Estados Unidos, como foi o caso de Charlottesville, na Virgínia, em 2017. Criando movimentos que já estão sendo chamados por alguns autores de Americanismo.

Ok, talvez o texto tenha alguns spoilers leves, hehe. Stevil afirma lutar pela segurança do povo. E realmente o faz, com seu ponto de vista distorcido e doutrinado da realidade. Afirma que, diferente de Tony e Carol, sua luta não é individualista por uma posição de autoridade. Mas ele vai até as últimas consequências para manter-se como figura de autoridade. Ou permite que façam.

Mesmo quando não tem o pulso firme necessário, deixa que seus associados tomem atitudes extremas, como o que acontece em Las Vegas. Para assegurar o poder, a segurança do povo é colocada em segundo plano e todo o discurso se torna imediatamente hipócrita e vilanesco. Neste momento, perdemos a empatia cuidadosamente construída pelo vilão e vemos que ele realmente é mau que nem o pica pau.

Inclusive este é um ponto baixo da obra pra mim. Numa tentativa de humanizar Stevil, em alguns momentos ele parece mais manipulado do que manipulador. Imagino que seja uma escolha artística (ou editorial) para 1. não perverter tanto a figura de Steve Rogers e 2. tentar humanizar e nos aproximar mais do personagem, mesmo em sua versão Hidra. O resultado, infelizmente, é um personagem chorão e sem vontade própria em alguns momentos. 

Educação e Mídia na Sociedade

Nos anos pré-ditadura de 1964, formou-se um complexo formado pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e pelo Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). O complexo IPED/IBAD, como seria chamado, era composto por um aglomerado de pensadores, professores, influenciadores da mídia e empresários liberais brasileiros.

O complexo era ligado diretamente a empresas multinacionais e associadas e tinha um forte posicionamento anticomunista. Uma de suas máximas era de que o país não podia mais ser deixado somente sob a direção dos políticos. Segundo o historiador Renee Dreyfuss, O IBAD agia como uma unidade tática e o IPES operava como centro estratégico.

A partir deste complexo, foram criados diversos Think Tanks de ideologia conservadora. Tais instituições eram organizadas por uma elite orgânica que compactuava com grupos militares antigovernistas durante a breve gestão Jango. Por essa, entre outras razões, o Golpe de 1964 é chamado de Civil-Militar.

Esses Think Tanks, unidos contra um objetivo específico, a “ameaça comunista” – não havia organização o suficiente para um ato revolucionário, mas as intenções de reforma agrária de Jango incomodavam os grandes latifundiários da época -, buscaram se enraizar na sociedade desde a educação básica até a superior. Os professores eram grande ferramenta de doutrinação liberal nas escolas.

Pierre Bourdieu foi um dos expoentes da corrente que ficou conhecida no Brasil como pessimismo pedagógico. Defendia a ideia da educação como uma instituição de manutenção de estruturas sociais. Os sujeitos seriam como marionetes num jogo dominado pelas estruturas hegemônicas.

Neste cenário, a conservação das classes seria predominante, diferente do que era prometido desde a Revolução Francesa, onde a educação poderia ser uma forma de ascensão social. Salvo exceções que mantém a crença na regra, os indivíduos, conscientes ou não, apenas reproduziriam as orientações determinadas pela estrutura social vigente, não as desafiariam.

Em “1984“, livro de George Orwell, talvez uma forte influência para o mundo distópico de Spencer, o protagonista trabalha no Ministério da Verdade, uma instituição que editava e alterava a história documentada do mundo, moldando as informações em prol de uma agenda política específica. Sem acesso a verdade e a História, os mesmos erros eram cometidos ciclicamente e a ditadura do Grande Irmão poderia ser mantida.

A censura funciona de maneira parecida, impedindo ideias anti-establishment de serem divulgadas e espalhadas. Atos de censura eram comuns tanto na ditadura civil-militar de 1964, mas parecem ter voltado a moda em casos recentes de ataque a exposições, como o Queermuseu ou até mesmo o boné do Gabriel Bá na Rede Globo, que teve a estrela vermelha parcialmente tampada por fita isolante preta durante uma conversa no programa do Pedro Bial.

Outro objetivo dos Think Tanks do IPED/IBAD era o espalhamento de Fake News, notícias falsas contendo desinformação, que eram rapidamente espalhadas pelo país – fenômeno não muito diferente do que vem acontecendo massivamente desde 2013 e mais fortemente em 2018, ano de eleição.

Todos esses tópicos são para introduzir um processo parecido em Império Secredo: Logo no começo da história, acompanhamos uma professora em uma sala de aula explicando a história dos Estados Unidos para os alunos.

Um dos alunos é repreendido por mencionar a história dos Estados Unidos como era trabalhada antes do regime de Stevil. A professora explica a nova versão, segundo ela, a versão verdadeira do que aconteceu e a libertação que o líder supremo havia trazido para a sociedade.

A educação é uma ferramenta. Pode ser utilizada de forma doutrinária ou libertária, apresentando verdades únicas ou múltiplas perspectivas. Ao subir ao poder, Stevil quis contar a sua história, a sua verdade, convencendo todo um país de que o que ele estava fazendo, o Estado de Exceção que estava criando, era o caminho certo para a liberdade de toda uma nação. Convenceu todo um país de que sua ditadura mão de ferro seria boa para eles.

Não muito diferente do que foi feito no Brasil com o chamado Milagre Econômico, por exemplo, que como as professoras Sônia Regina de Mendonça e Virgínia Maria Fontes bem exploram, é uma expressão vazia para explicar um período de forte arrocho salarial e abertura da economia brasileira para fortes empréstimos de capital estrangeiro, o que deixou o país devendo no mercado internacional por quatro décadas.

Além disso, o arrocho foi responsável pelo maior período de desigualdade social que o Brasil já viveu e a inflação era altíssima. A ideia de que o Brasil prosperava economicamente era verdadeira, mas a riqueza se concentrava na mão de poucos e não era usufruto da população.

Theodore Adorno foi um pensador que defendia a tese de uma grande mídia manipuladora. Outras correntes, mais tarde, defenderam do poder de influência da mídia, não manipulação. Isso é importante porque não coloca a população como vítima de um processo, mas como parte dele. Mas se a influência for grande o suficiente como no Brasil, onde apenas sete famílias com dominam todo o sistema massivo de comunicação televisiva, manipulação pode ser algo bem próximo da verdade.

Todo o processo de influência midiática em Império Secreto, através de um processo de censura e educação, cria verdades que a maior parte da população compra facilmente. E as cicatrizes são escondidas. Não é a toa que Stevil proíbe que se fale sobre Las Vegas em rede nacional. A verdade é uma arma poderosa. E deve estar concentrada na mão dos poderosos se estes quiserem manter o poder e o status quo.

Representatividade

Outra faceta trabalhada em Império Secreto é a representatividade.

Não tem nenhum inumano e nem mutante no núcleo de poder da HYDRA. Ninguém para opinar sobre as medidas governamentais de Stevil e lutar por direitos básicos. A violência que isso acarreta é uma consequência direta da falta de figuras representativas em postos de tomada de decisão.

Essa ausência reflete diretamente na forma como essa determinada porção da população (e seus simpatizantes) poderão ser tratados pelas figuras de autoridade. A recém-criada nação mutante, por exemplo, torna-se rapidamente um problema a ser combatido.

Sem representatividade mutante ou inumana, a “nação perfeita” de Stevil é especiecista. Como todo leitor de Marvel sabe, os mutantes são representantes das minorias da vida real (mesmo que tenham mais personagens azuis do que negros nos X-Men). Um governo excludente a mutantes e inumanos na Marvel pode ser lido como um paralelo ao segregacionismo de outras minorias na vida real. Especiecismo se tornaria racismo.

As sábias palavras de Jean Grey em X-Men Red #1 seriam pertinentes para descrever a gestão de Stevil: “Toda vez que poderosos decidem discutir como lidar com minorias sem envolver a minoria em questão na conversa, termina mal”. E de fato, políticas higienistas e até mesmo genocidas são postas em ação.

Mas mesmo após o fim do Império Secreto de Stevil, os mutantes voltam a ser perseguidos. A nação que construíram com sua própria força de trabalho é obliterada e eles voltam a habitar nas periferias da vida social. Os mutantes, assim como moradores de guetos e favelas, mesmo após a queda de governos autocráticos, estão quase sempre em Estado de Exceção.

A Importância da Memória

Esse ponto é um questionamento global. Sobre erros, sobre cicatrizes, sobre memória. O Império Secreto deixou muitas marcas no Universo Marvel. Desde mortes até rastros de destruição. Tudo bem, sabemos que os quadrinhos são cíclicos e eventualmente os personagens finados vão voltar e que os destroços serão reconstruídos. Mas é importante que não tenha sido dentro da própria saga.

O desastre de Las Vegas foi uma questão marcante na gestão Stevil. Foi um ponto sem volta, um marco que mostrou pra todos que, por mais que o personagem acreditasse que o que pregava era o melhor, seus meios eram errados. Um acontecimento que tirou qualquer dúvida que alguém pudesse ter que fascistas são vilões. Pode parecer meio bobo falar isso hoje em dia, mas muita gente precisa ter isso claro. Voltou a se tornar uma questão.

Kobik, a criança que é um cubo cósmico senciente, poderia ter reescrito a realidade e fazer com que nada da saga tivesse acontecido. Com que o que houve em Las Vegas não tivesse acontecido. Esse era um receio meu enquanto estava lendo a saga.

A Argentina criou uma comissão da verdade logo após o fim de seu último período ditatorial. A Alemanha preservou seus campos de concentração. O Brasil, como de costume, decidiu esquecer a história. As consequências desse esquecimento, dessa ansiedade por sair de um período sombrio e entrar numa nova era com um aparentemente brilhante futuro, é uma sina da nossa história.

Desde a invasão do território pelos portugueses e o querer catequisar nosso povo, deixando pra trás as heresias. Os decretos tanto do Marquês de Pombal quanto de D. João Sexto proibindo o uso de línguas do tronco tupi, principalmente o nheengatu, língua franca no Brasil até então.

A República das Espadas e o esforço de esquecer o passado colonial. O projeto de Vargas de apagamento dos movimentos anarco-socio-trabalhistas da década de 1920, fazendo se popularizar a ideia de que as Leis Trabalhistas foram um presente dele para o povo brasileiro. A redemocratização pós-ditadura de 1964 e a anistia de pessoas que cometeram crimes contra a humanidade neste período.

Parece que temos uma pressa para chegar num futuro ilusório, numa promessa de desenvolvimento que paira sempre um pouco a frente. Essa pressa nos faz querer abandonar o que já fomos, com vergonha, ao invés de lembrar e aprender com os erros do passado. Só que, sem aprender com os erros, continuamos colecionando Golpes de Estado (discutivelmente, são 10 com o mais recente).

A máxima de “quem não conhece a história está fadada a repetí-la” pairava sobre o Universo Marvel como uma possibilidade. Tudo o que era necessário era um capricho de uma criança com a capacidade de alterar a realidade a seu bel prazer (ou de um editorial safado, louco para retornar tudo ao status quo).

Mas Spencer foi mais cuidadoso, soube da importância das memórias – mesmo as ruins. “Kobik restourou a história que foi corrompida e tomada de nós. Mas ela deixou as cicatrizes e os destroços. Uma lembrança de nossa promessa: nunca mais”.

Com o retorno tão forte de alguns fenômenos pré-ditadura e tantas semelhanças com o Universo Marvel, é bom ficarmos muito vigilantes para não acabarmos entrando em um novo Império Secreto Brasileiro.

Ou talvez mais uma ditadura nem tão secreta assim.

Bibliografia:

ADORNO, Theodore. Dialética do Esclarecimento. 1 Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

DREIFFUS, Rene. 1964: A Conquista do Estado – Ação Política, Poder e Golpe de Classe. 2 Ed. Petrópolis: Vozes, 1981.

FICO, Carlos. Espionagem, Polícia Política, Censura e Propaganda: os pilares básicos da repressão. In: FERREIRA, Jorge; Lucilia de Almeida Neves Delgado. O Brasil Republicano: O tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. 2 Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

KLEIN, Naomi. A Doutrina do Choque – A Ascensão do Capitalismo de Desastre. 1 Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

MENDONÇA, Sonia. Estado e Economia no Brasil: Opções de Desenvolvimento. 2 Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

FONTES, Virgínia. As Bases do Milagre. IN: MENDONÇA, Sonia e FONTES, Virgínia. História do Brasil Recente.1 Ed. São Paulo: Editora Atica, 1991.

RODRIGUES, Alberto Tosi. Sociologia da Educação. 6 Ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007.

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