A fragmentação da identidade americana no Capitão América de Coates
Quando você abre uma nova revista do Capitão América com um nome tão político e talentoso quanto Ta-Nehisi Coates (Pantera Negra) e um desenhista tão versátil quanto Leinil Francis Yu (Vingadores), é difícil não criar expectativas.
Depois da fantástica saga Império Secreto e uma fase com um Capitão América tão consistente e ressignificado quanto o Sam Wilson de Nick Spencer, qualquer continuação parte de uma enorme sombra como ponto de referência. Para amenizar, um nostálgico e consistente Mark Waid escreve uma transição que pouco considera o que se passou antes e mais se preocupa em trazer de volta alguns dos conceitos básicos de essência do personagem em histórias curtas.
É uma estratégia que funciona. Dá tempo para o próximo roteirista se planejar e partir daí, além de acalmar um grande leque de fãs depois de um run tão polêmico. Mas essa estratégia também desconsidera todo o impacto político e contemporâneo que a fase anterior trouxe. Coates não chega para esconder o passado e glorificar o presente, à lá Brasil pós-redemocratização.
Ele chega para botar o dedo na ferida, algo mais próximo à Comissão de Verdade argentina pós-ditadura. Isso fica claro quando, na primeira página, vemos o tradicional verde-e-amarelo da Hidra. E o recordatório: “A Hidra conquistou as pessoas”. Não os Estados Unidos, a nação. As pessoas.
A história começa nas montanhas quando uma caravana da hidra é atacada. Um soldado diz que o reino de mil anos da Hidra havia acabado de começar. Como resposta, escuta se tratar da Rússia, cemitério de outros grandes pretensos impérios. Claro, a Hidra seria apenas mais um desses.
Depois desta introdução invernal, somos transportados para o coração da dita democracia americana depois de seu período mais sombrio na Marvel: Washington DC. A primeira imagem que vemos, é um homem branco musculoso com a bandeira dos Estados Unidos estampada no rosto e balas voando em sua frente enquanto atira em pessoas com uma metralhadora, o Bazuca. A América de Coates é decrépita e desalmada. A violência parte da própria bandeira que prega igualdade e oportunidade.
O recordatório continua. Uma verdade diferente é apresentada pela imprensa: o povo derrotou a hidra. Mas essas coisas simplesmente não acabam. Continuam pairando. Não dá pra simplesmente não lidar com as consequências e fingir que não aconteceu. Não dá pra simplesmente anistiar todo mundo e esperar que o mundo melhore do dia para a noite como fizemos aqui no Brasil.
Se não combatermos de frente, o espectro da tirania vai continuar nos assombrando e mais de 30 anos depois teremos adolescentes pregando pelo retorno de um Império Secreto ou aclamando candidatos que representam tudo aquilo que lutamos arduamente contra. Coates sabe disso. Nos brasileiros, sabemos melhor.
Bem, voltando. O Capitão faz sua entrada como um homem leal a nada, além do sonho. Vemos que não é apenas um Bazuca, mas vários homens vestidos como ele. Claro, se não forem combatidas, essas coisas se espalham.
Os Bazucas hesitam ao verem o Capitão original na sua frente. Não o Stevil – que traiu os valores deles -, nem o Sam – que provavelmente nem hesitariam antes de atirar. Param por um minuto por não saberem mais como encarar a representação do sonho americano na frente deles. Um significado que um dia foi tão forte para uma nação, hoje se fratura.
O Capitão tenta dialogar, mas não adianta. Logo é respondido com violência. Sabia que seria respondido assim, mas tenta dialogar assim mesmo. O recordatório diz que muito mudou. Sim, o contexto lá em cima é outro. Não dá pra jogar pra baixo do tapete e fingir que não é.
Depois de tanta violência, uma splash page de ambulâncias, bombeiros, policiais e os heróis, Bucky e o Capitão, ajudando os feridos. Claro, depois de tudo o que aconteceu, Coates quer reestabelecer o Capitão como uma figura significativa de reconstrução. De lidar com as consequências, não simplesmente bater num vilão e ir para a próxima aventura.
Além disso, coloca as crianças e os trabalhadores americanos comuns como os heróis, tanto quanto os super-heróis. É um discurso que já conhecemos de outras histórias patrióticas, que não traz muito de novo, mas é uma afirmação identitária importante para o momento do universo Marvel.
Uma pena o desenho de Yu não ser mais detalhado aqui. É um painel discursivamente importante, que poderia ter um pouco mais de construção para deter os olhos do leitor por mais alguns segundos. Me faz pensar que roteirista e desenhista estão em certo descompasso, afinal, as cenas de violência recebem muito mais atenção do que as consequências dela.
Após a confusão, o conservador e beligerante general Ross chega e diz que Steve sempre será seu Capitão. Além disso, o Bazuca original sempre teve respeito por Steve. Esse tipo de coisa faz o próprio Rogers se questionar do seu papel no meio de tudo aquilo. Como pode defender com tanta garra algo que outros homens também defendem de perspectivas tão diferentes. A identidade nacional americana está, hoje, cada vez mais fragmentada. E Coates retrata isso com clareza e sem medir palavras.
Só nesse ponto fica claro para o leitor a origem do problema: era um protesto pró-hidra, situação não muito diferente do que podemos testemunhar aqui no Brasil. Mas a violência, assim como os preconceitos, parece ser historicamente mais direta lá com os americanos.
Quando o Capitão pergunta como pode ajudar em questões nacionais, Ross o corta. Ele é um herói nacional, mas algumas questões são mais delicadas. Novamente nos parece que o bom herói que bate em bandidos maus está congelado, fora de seu tempo. E, nesse novo país, precisa se reinventar.
Talvez esse seja o ponto mais significativo do Capitão desde seu retorno, em 1964: a capacidade de se reinventar. De ser um herói de um outro tempo, com outros valores e o embate de suas crenças com a conformação atual da sociedade em que vive agora.
Por conta disso, já abandonou o manto em diversos momentos. Já deixou de acreditar em seu país e no significado que a bandeira americana passou a carregar. Mas depois de seu maior inimigo carregar seu rosto, depois de ver uma nação realmente dividida – seja pelos movimentos ocuppy, a eleição de Trump ou o Império Secreto -, a reinvenção do sonho parece mais caótica e necessária.
Coates foi corajoso ao colocar tantas questões em uma edição introdutória. Se para Spencer, o Capitão América Sam Wilson representava esperança; o que, em uma nação destroçada e desiludida por conflitos físicos e ideológicos, um velho herói de guerra pode representar? É difícil saber tão cedo, mas Ta-Nehisi Coates parece ter algo a dizer sobre isso.