Era do X-Man: Na falsa Utopia, os errados somos nós

Ao fim da décima edição de Uncanny X-Men (2018), os X-Men foram mortos. Ou pelo menos foi isso que a população mundial presumiu diante do desaparecimento da maior parte do elenco mutante. Tempestade, Jean Grey, Kitty Pryde, Noturno, Colossus… todos aparentemente dizimados por Nate Grey, o X-Man. Na realidade, aquele aparente fim dos X-Men era na verdade um novo começo. O começo da Era do X-Man.

Na época que ‘Age of X-Man – Alpha’ foi lançada lá fora, há mais de seis meses, nós fizemos aqui uma review sobre o começo da história e sobre como o futuro parecia promissor para os mutantes. E, particularmente, a proposta dos roteiristas Zac Thompson e Lonnie Nadler foi cumprida. Por mais que tenha dividido opiniões entre o fandom, a revista, diferente do título principal dos mutantes (que iremos tratar em uma outra review), conseguiu trazer uma proposta bem diferente do que estávamos há anos acompanhando nas revistas mutantes, presas em um ciclo de nostalgias e repetições descaradas.

A proposta da saga seria uma história em que o foco era a exploração daquele novo mundo sob a percepção dos personagens, não só a ação e a violência gráfica feita só pra causar um impacto no leitor. O objetivo maior era trabalhar como esses personagens lidavam com essa falsa utopia.

A Era do X-Man VS A Era do Apocalipse

Tanto por conta do nome da saga, quanto pela proposta de ser um universo dominado por mutantes, desde o começo a Era do X-Man sofreu com comparações com a Era do Apocalipse, que é um grande marco para a história dos mutantes. E, realmente, o evento pode ser visto como uma consequência disso. Afinal, a própria existência do Nate Grey, o X-Man, é resultado da Era do Apocalipse – e isso é citado dentro da revista. 

Ao definir o papel de Apocalipse em seu novo mundo, Nate o lembra de que foi criado para acabar com a existência de En Sabah Nur, o Apocalipse, em sua realidade original.

Só que, ao contrário de A Era do Apocalipse, onde os humanos eram colocados em uma posição de perseguição, caçados em uma tentativa de genocídio, a proposta dessa revista não é trazer uma distopia, um cenário “apocalíptico”. É justamente o contrário. Enquanto En Sabah Nur, como seu próprio título aponta, é uma figura que representa o fim daquilo que é bom, o juízo final, o terror, Nate cria uma persona para si que é a antítese disso. Nesse mundo, Nate é uma figura quase divina, um criador, que trouxe a paz para o mundo. A Era do X-Man é uma Faux Utopia – uma Utopia falsa.

Enquanto em A Era do Apocalipse todos tinham a figura de En Sabah Nur como um tirano insano e sanguinário, em um mundo caótico e arrasado por inúmeras guerras, os mutantes vivem em paz na Era do X-Man. Nesse mundo não existe perseguição, não existe ódio. E isso não é porque os papéis se inverteram e os humanos agora é que são inferiores (como Brian Michael Bendis fez em Dinastia M). No mundo criado por Nate, os mutantes não são mais caçados ou odiados por serem diferentes porque os humanos sequer existem. Todos são mutantes. E os X-Men são as estrelas, ao invés de um grupo marginalizado, temido e odiado.

A Falsa Utopia

Só que enquanto todo mundo sabia que o Apocalipse, em sua realidade, era um tirano, nesse mundo quase perfeito criado por Nate, a maioria das pessoas não o enxergam assim. Mutantes livres para serem quem são, X-Men super estrelas, um mundo onde não existem assassinatos… é um sonho concretizado. Por que odiariam quem fez tudo isso acontecer?

“Pela primeira vez na história, o mundo é maravilhoso e todo mundo sabe disso”

Mas como o Nate pergunta no final de Age of X-Man – Omega, “o que você sacrificaria pelos seus sonhos?”. E é nessa resposta é que as rachaduras do “mundo perfeito” surgem. Acreditando que sabia o que era melhor para todos, Nate expurga desse seu novo mundo a existência dos relacionamentos e do amor. Seja amor romântico ou o entre familiares, nesse novo mundo não há espaço para relações interpessoais mais profundas do que a de colegas. E essa proibição é reforçada por uma polícia própria, o Departamento X, responsável por caçar qualquer indivíduo que passa dos limites. Aqui, o amor e o afeto são considerados imorais e ilegais.

A proibição do amor

Já citei, na review anterior, como essa situação do amor e do afeto como imoral e ilegal não está tão distante da gente assim. Casais interraciais já foram considerados proibidos tanto moral quanto legalmente por décadas. Nos EUA, só em 1967 que indivíduos de etnia diferentes tiveram permissão legal para casar. Do outro lado, casais homoafetivos só são reconhecidos até hoje em trinta dos mais de 190 países, sendo que são considerados criminosos em setenta – com direito a pena de morte em pelo menos nove países.

E isso é trazido para o evento não só em forma de alegoria, algo que é recorrente demais para os mutantes. A maioria dos casais ou de pessoas em conflito trazidos para a saga são parte de relacionamentos não convencionais. Jean Grey e Bishop são um casal interracial aqui (muito criticado pelo fandom, inclusive, em um reflexo desse racismo que ainda existe bem forte); Estrela Polar, Rictor e Homem de Gelo tem um diálogo importante em Age of X-Man: X-Tremists dentro de um cinema ilegal onde casais iam para se relacionar – antigamente, cinemas de filmes adultos eram refúgios para casais homossexuais (os três personagens, inclusive, são gays); Jubileu, que esquece que tem um filho adotivo, começa a se desesperar quando percebe que isso lhe foi tirado.

Em X-Tremists, Jean-Paul, o Estrela Polar, sofre com a ausência de seu marido, Kyle.

Todos os casos citados ainda são frequentemente considerados socialmente como inferiores a alguns padrões mais normativos. Seja um relacionamento interracial, homoafetivo ou o amor de uma mãe adotiva pelo seu filho, esses retratos são constantemente apagados e desconsiderados, como se não fossem “reais” o bastante. E, neste mundo fabricado, isso é colocado de forma literal, já que os próprios personagens não sabem mais o que é real ou não.

Além desses, em X-Tremists, a roteirista Leah Williams traz uma versão diferente e mais humanizada do Fred Dukes, o Blob. No passado, o personagem sempre foi colocado apenas como piada por ser gordo, onde toda sua personalidade parecia ser formada no fato de ele ser obeso. E isso inclui a bizarra versão do universo Ultimate, que literalmente devora a Vespa, viva. Porque gordo come qualquer coisa, né? Haha. Hilário.

Em X-Tremists, porém, vemos um Fred intelectual, que gosta, sim, de comer, mas não é apenas um enorme glutão feito de alívio cômico. Ele ama livros, e, ainda mais, ama sua colega de trabalho Betsy Braddock, a Psylocke. E isso é mais um relacionamento fora do convencional, já que Betsy é magra, uma ex-modelo, enquanto Fred é gordo. No mundo real, esse também não é um tipo de relacionamento facilmente aceito.

Ciclo de ódio e repetições

Ao longo do evento, seja dentro da equipe dos Maravilhosos X-Men, entre os alunos rebeldes do Instituto Summers ou até mesmo no próprio Departamento X, as lembranças de um passado e o sentimento de que tudo estava errado levaram todos os núcleos ao confronto final contra o X-Man. Em Age of X-Man – Omega, o encerramento de todas as revistas do evento, a maioria dos personagens já percebeu o que aconteceu com suas vidas e partem para a ação. Só que nem todo mundo está totalmente de acordo com um retorno para o mundo de antes. E podemos culpá-los?

Como o Nate lembra seus companheiros, “em [seu] mundo, mutantes eram incompreendidos, temidos e odiados. Aqui eles encontraram paz.” 

Em um monólogo, Nate então informa os X-Men o porquê de suas ações. Afinal, os X-Men podem ser heróis há décadas, mas estão longe de serem apreciados por isso. Na realidade original, eles são odiados por suas aparências e por seus poderes. Além disso, os relacionamentos realmente causaram danos terríveis para as histórias de alguns – como a recente separação de Colossus e Kitty, a briga constante entre os ex-melhores amigos Magneto e Xavier, e a Jean Grey, que mais de uma vez morreu por amor aos outros.

Tudo que Nate queria era mostrar como os X-Men mereciam mais do que isso, mas estavam presos em um ciclo de repetições que permitia que tudo isso atrapalhasse sua felicidade. Ele lança o questionamento: “quantas vezes nós voltamos para tentar consertar as coisas, mas desde o princípio aquilo que estava quebrado éramos nós mesmos?”

E aqui eu gostaria de fazer um paralelo com a quantidade de hate que esse evento recebeu. Os fãs de X-Men ficaram anos com revistas medíocres que tinham pouco impacto e que na maioria das vezes repetiam vilões e situações que já haviam acontecido no passado. Isso tudo sem acrescentar nada de novo, sem nenhum questionamento original.

Presos na nostalgia, os fãs de quadrinhos são muito resistentes a mudanças de status quo, o que bota as revistas no ciclo de repetições onde a mesma história é contada de novo e de novo. Onde os personagens não podem ter um pouco de evolução até que os “fãs” achem que não conseguem mais se identificar com ele. Ou onde os heróis não podem seguir em frente e passarem o manto para outros personagens sem que haja uma histeria coletiva de adultos reclamando que estão “destruindo suas infâncias“.

Ao mesmo tempo que os fãs exigem novidades e histórias boas, eles são os primeiros a reclamar de mudança, os primeiros a reclamar de uma história que ouse inovar. No Twitter, o roteirista Zac Thompson até repostou um vídeo enviado a ele de um hater queimando uma revista de Age of X-Man. Fora os casos em que roteiristas são ameaçados de morte por fazer mudanças que desagradem o leitor. Pera lá! Já passou da hora do fandom de gibis olhar para dentro e perceber o quão podre essa comunidade pode ter se tornado, muitas vezes cega pelo ódio e pelas repetições, da mesma forma que o X-Man cita na revista.

Conclusão

No fim, o próprio Nate se dá conta de que nem ele mesmo conseguiu escapar dos erros que ele acusava os outros. Que nem ele próprio conseguia se desvencilhar por completo dos relacionamentos. Porque, por mais que queiramos, relacionamentos são parte de nós e como nos relacionamentos com nós mesmos e com o outro é o que nos define.

O próprio Nate se viu preso ao relacionamento que tivera com a Dani Moonstar – tão preso que a recriou naquele mundo sem que ela realmente estivesse ali de fato.

Os X-Men, mesmo com a resistência de alguns que não queriam voltar para o mundo onde eram odiados, convencem Nate a libertá-los daquela realidade falsa. Eles retornam sob a promessa de que aquele mundo – e todas as vidas criadas ali – seriam destruídos para sempre. (E a consciência tranquila). A história então se encerra com Magneto fingindo que acabaria com tudo, mas que decide manter a sua versão daquele mundo ali, tentando recomeçar aquele lugar sem as mentiras, sem a perseguição do amor e sem uma polícia tirana. Só que o que ele estaria disposto a abrir mão para criar um novo mundo assim é o questionamento que fica em aberto. Será que mundos perfeitos são possíveis?

O design de alguns dos personagens em A Era do X-Man

No fim, a Era do X-Man pode não ter tido o sucesso que deveria, mas com certeza ficará marcada como uma revista que se permitiu ousar em um período em que os X-Men estavam fadados à repetição, presos numa nostalgia. E, sobretudo, será marcada como um evento que tocou em assuntos importantes, que vão desde a condenação de relacionamentos não-normativos, até a aceitação de corpos e tratamento dado a presos, em uma história onde todo aquele mundo funcionava diante de sua proposta. Fora os designs magníficos que deu um ar totalmente novo a vários dos personagens. E eu ouso prever que será um clássico cult no futuro, rejeitado na contemporaneidade apenas por estar à frente de seu tempo.

Mas e você, caro leitor, o que achou da Era do X-Man? Concorda que ela trouxe um frescor em um momento complicado da franquia mutante? Deixe a sua opinião nos comentários.

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