É mentira que o mercado de quadrinhos está em crise nos Estados Unidos
Na última semana as histórias em quadrinhos voltaram a ser pauta nas principais rodas de discussão do mundo. Isso se deu pelo fato do atual Superman da DC, Jon Kent, que é filho do clássico Superman, Clark Kent, ter sido revelado como bissexual.
É muito triste em 2021 ainda seja preciso desmentir mentiras construídas em cima de preconceito. Se espalhou pela internet que o mercado de quadrinhos norte-americano está em crise e que essa queda nas vendas seria por causa da diversidade. E a mentira vai além, diz ainda que em reflexo a isso, os mangás passaram a vender mais do que os quadrinhos americanos, pois não tem “lacração”.
E é importante deixar claro e que você entenda lacração como uma expressão preconceituosa, usada por preconceituosos, para se referir a produções (filmes, livros, séries, jogos, quadrinhos e etc) que contam com personagens pertencentes a comunidades historicamente oprimidas na sociedade.
Lacração nos mangás
A forma mais simples de desmontar essa frágil mentira, que só ganha sustentação pela quantidade absurda de ignorantes que a compartilham na internet, é falando que mangás, assim como os quadrinhos, também contam com diversidade.
Talvez os mais ignorantes no mercado de mangás pensem que tudo se resume a Naruto, Dragon Ball e Cavaleiros do Zodíaco. Porém, o mercado dos mangás é gigante e possui diversos nichos, que atendem as demandas de diferentes públicos.
Essa percepção de que os mangás não se preocupam com diversidade talvez se dê pelo fato de que alguns dos principais sucessos, que também acabam virando animes na TV, são do estilo shounen, como os já mencionados Naruto e Dragon Ball. São obras voltadas para público masculino e infantil, histórias de lutinha e sem tanta profundidade no geral.
Mas mesmo esses mangás também contam com alguma parcela de diversidade. O caso mais famoso talvez seja do personagem Yamato de One Piece, que é desenhado com um corpo feminino, mas se identifica com o gênero masculino e pede para ser chamado por pronomes masculinos. É uma representatividade trans inserida em uma das obras mais populares do Japão.
One Piece também já teve vários personagens não heterossexuais ao longo das centenas de episódios. Hunter x Hunter, outro mangá de sucesso no país, também trás discussões sobre gênero e sexualidade nas suas páginas. Até mesmo o já mencionado Naruto, mesmo que de forma modesta, também teve o cuidado de apresentar ninjas de pele escura. Só para exemplificar alguns casos.
Mas no mangá também há estilos voltados para as meninas (shoujo), que retratam romances LGBT (boys love e girls love) e vários outros (que você pode entender melhor clicando aqui).
A questão é: se os quadrinhos estão, supostamente, em queda por causa da diversidade, o mesmo não deveria estar acontecendo com os mangás, que também ofertam uma pluralidade de abordagens e representações? A verdade é que o pessoal que espalha essas mentiras possivelmente nem sabe que existem mangás além dos de lutinha voltados para a criançada.
As vendas dos quadrinhos
Deixando claro esse ponto sobe os mangás, vamos focar nas vendas de quadrinhos. Se o mercado está em crise, os números precisam cair né? Os números atuais precisam ser menores do que os dos últimos anos, caso contrário não se configura uma queda. Se os números crescem o mercado está aumentando e não diminuindo.
E é aí que as coisas ficam interessantes: o portal Comichron, que há décadas acompanhas as vendas de quadrinhos nos Estados Unidos, divulgou que as vendas do verão deles (entre junho e agosto de 2021), tiveram o terceiro melhor resultado desde 1997.
Analisando os dados dos 300 quadrinhos mais vendidos nesse período, o mercado inteiro vendeu 24,2 milhões de HQs. Isso é, apenas single editions, as edições únicas de 22 páginas, capa mole e com grampo. Material vendido exclusivamente em comic shops.
Vale lembrar ainda que os verões que venderam mais gibis foram: em 2016, quando a DC Comics lançou a iniciativa chamada Renascimento, que foi um grande sucesso. E 1997, quando o mercado estava muito mais fortalecido, existia o dobro de comic shops pelos Estados Unidos e os quadrinhos não competiam atenção com serviços de streaming, celulares e video games portáteis.
Para fins de curiosidade, confira abaixo as 10 HQs mais vendidas em Junho, Julho e Agosto:
Top10 HQs de Junho de 2021:
1 – Venom #35 (Marvel)
2 – Spawn Universe #1 (Image)
3 – Star Wars: A Guerra dos Caçadores de Recompensa #1 (Marvel)
4 – Brzrkr #3 (Boom)
5 – Batman #109 (DC)
6 – Demon Days: Mariko (Marvel)
7 – Nice House on the Lake (DC)
8 – X-Men #21 (Marvel)
9 – Planet-Size X-Men (Marvel)
10 – Star Wars: Alta República #6 (Marvel)
É importante destacar que em junho de 2021 o mercado inteiro arrecadou $41,16 milhões de dólares, sendo que em junho de 2019 foi arrecadado, no mesmo período, $26,34 milhões. Tivemos um crescimento significativo, hein? O ano de 2020 não entrou na comparação pois o mercado paralisou em março e começou a voltar ao normal aos poucos a partir de julho/agosto, devido a pandemia.
Top10 HQs de Julho de 2021:
1 – X-Men #1 (Marvel)
2 – Cavaleiro da Lua #1 (Marvel)
3 – Carnificina Extrema: Alfa (Marvel)
4 – Batman #110 (DC)
5 – Guerra Sinistra #1 (Marvel)
6 – Brzrkr #4 (Boom)
7 – M.O.M. – Mother of Madness #1 (Image)
8 – Batman/Fortnite – Ponto Zero #6 (DC)
9 – Skybound X #1 (Image)
10 – Coringa #5 (DC)
Top10 HQs de Agosto de 2021:
1 – Rei Spawn #1 (Image)
2 – Batman ’89 #1 (DC)
3 – Batman #111 (DC)
4 – X-Men: O Julgamento de Magneto #1 (Marvel)
5 – Batman: Estado de Medo Alfa (DC)
6 – X-Men #2 (Marvel)
7 – Cavaleiro da Lua #2 (Marvel)
8 – Kang, o Conquistador #1 (Marvel)
9 – O Espetacular Homem-Aranha #72 (Marvel)
10 – Star Wars: A Guerra dos Caçadores de Recompensar #3 (Marvel)
Essas foram apenas as 10 HQs mais vendidas de cada mês. Mas caso tenha curiosidade em ver mais detalhes e a lista completa com as 450 HQs mais vendidas em casa mês, confira nesses links de Junho, Julho e Agosto.
Retrospecto do mercado
O mercado de quadrinhos vem há anos numa crescente, entre 2012 e 2020, o único ano em que o mercado não cresceu foi em 2017. Até mesmo o ano de 2020, com a pandemia afetando o mercado, que ficou paralisado por cerca de três meses, houve um crescimento e se arrecadou, no geral, $1,28 bilhão.
Mas é importante a gente dissecar esse $1,28 bilhão.
$645 milhões vem das livrarias. Aqui estão inclusos os encadernados de comics e os mangás.
$440 milhões vem das comic shops, únicos estabelecimentos dos EUA que vendem as single editions das comics.
$160 milhões são dos quadrinhos digitais.
$35 milhões correspondem a outras origens, como projetos de financiamento coletivo.
Comics vs Mangá
Mas mesmo esses números podem ser ainda mais dissecados. O portal ICv2 compila e analisa os dados das livrarias por um sistema chamado BookScan e através dele foi possível desmembrar o que corresponde os $645 milhões arrecadados nas livrarias em 2020.
Pois enquanto nos $440 milhões correspondem apenas as single editions de quadrinhos norte-americanos, nos $645 estão inclusos os encadernados de comics e mangás. Mas e aí, qual será que vendeu mais?
Conforme disponibilizado pelo site ComicsBeat, usando dados coletados pelo ICv2 via BookScan, dos $645 milhões arrecadados pelas livrarias, cerca de $480 milhões correspondem aos quadrinhos, um crescimento de cerca de 20% em relação a 2019. Os mangás tiveram um crescimento de 56% na arrecadação e correspondem a aproximadamente $161 milhões.
[Nota do Editor: os números gerais da BookScan não são públicos, então dependemos de análises de portais como o ComicsBeat e ICv2. Mas o ICV2 em matéria lançada em julho de 2021 (a do ComicsBeat saiu em Agosto), relata que as vendas de mangás foram de quase $250 milhões. Não temos como precisar qual dado está correto, porém independente de ter sido $161 milhões ou quase #250 milhões, ainda é cerca de $1 bilhão a menos do que os quadrinhos]
E um fato curioso é que os quadrinhos que mais vendem não são da Marvel, nem da DC, tampouco da Image ou qualquer outra editora tradicional. As HQs que mais vendem são histórias infantis, voltada pra criançada mesmo. Galera que está aprendendo a ler.
Então, podemos concluir que se dos $1,28 bilhão de vendas, apenas $161 milhões são de mangás, todo o restante, $1,12 bilhão são de quadrinhos americanos de fato.
Os mangás estão crescendo MUITO sim, porém, nos Estados Unidos, os comics ainda vendem mais. Assim como no Japão, os mangás reinam absolutos e vendem muito mais do que os comics. Cada mercado com a sua particularidade.
[Nota do Editor: é importante também deixar claro, principalmente nos números referentes as livrarias, que os números não são 100% precisos, mas uma estimativa mais próxima da realidade possível. Pois alguns vendedores, como a Amazon, ofertam promoções que diminuem o preço de capa. E os números apresentados acima são calculados levando em conta o número de vendas x o preço de capa. Então há uma margem para baixo nesses números.]
A Diversidade
Se olharmos os Top10 de HQs mais vendidas em cada ano, as single editions, veremos que há uma significativa parcela de títulos protagonizados por mulheres, personagens negros ou ainda equipes que possuem na sua essência elencos e argumentos inclusivos e representativos, como os X-Men e Campeões.
Confira abaixo a lista das 10 HQs mais vendidas entre 2015 e 2020.
Top10 HQs mais vendidas em 2015:
1 – Star Wars #1 (Marvel)
2 – Guerras Secretas #1 (Marvel)
3 – Bravest Warriors Tales Holo John #1 (Boom)
4 – Orphan Black #1 (IDW)
5 – Cavaleiro das Trevas III – A Raça Superior #1 (DC)
6 – Star Wars: A Queda de Vader #1 (Marvel)
7 – Darth Vader #1 (Marvel)
8 – Gwen-Aranha #1 (Marvel)
9 – Invencível Homem de Ferro #1 (Marvel)
10 – Princesa Leia #1 (Marvel)
Gwen-Aranha e Princesa Leia marcam presença na lista mostrando o poder das heroínas.
Top 10 HQs mais vendidas em 2016:
1 – Big Trouble in Little China/Escape From New York (Boom)
2 – Guerra Civil II #1 (Marvel)
3 – Arlequina #1 (DC)
4 – Campeões #1 (Marvel)
5 – Universo DC: Renascimento (DC)
6 – Batman #1 (DC)
7 – Grandes Astros Batman #1 (DC)
8 – Pantera Negra #1 (Marvel)
9 – Esquadrão Suicida #1 (DC)
10 – Batman: Renascimento (DC)
Os destaques aqui ficam para a Arlequina, Campeões e Pantera Negra, títulos que venderam muito e suas histórias são recheadas de discussões atuais.
Top 10 HQs mais vendidas em 2017:
1 – Marvel Legacy #1 (Marvel)
2 – Noite de Trevas: Metal #1 (DC)
3 – Peter Parker: O Espetacular Homem-Aranha #1 (Marvel)
4 – Império Secreto #0 (Marvel)
5 – Império Secreto #1 (Marvel)
6 – Noite de Trevas: Metal #3 (DC)
7 – Noite de Trevas: Metal #2 (DC)
8 – Relógio do Juízo Final #2 (DC)
9 – Noite de Trevas: Metal #4 (DC)
10 – A Ressureição da Fênix: O Retorno de Jean Grey #1 (Marvel)
O que devemos observar aqui é a saga Império Secreto, quando um distorcido e fascista Steve Rogers implanta uma ditadura nos Estados Unidos e o responsável por salvar o dia é o Capitão América Sam Wilson. Também temos o retorno da heroína Jean Grey.
Top10 HQs mais vendidas em 2018:
1 – Action Comics #1000 (DC)
2 – O Espetacular Homem-Aranha #800 (Marvel)
3 – Batman #50 (DC)
4 – Quarteto Fantástico #1 (Marvel)
5 – O Espetacular Homem-Aranha #1 (Marvel)
6 – O Retorno do Wolverine #1 (Marvel)
7 – Venom #1 (Marvel)
8 – O Espetacular Homem-Aranha #798 (Marvel)
9 – O Batman que Ri #1 (DC)
10 – O Espetacular Homem-Aranha #799 (Marvel)
2018 foi um ano realmente fraco para a diversidade. Homem-Aranha e Batman reinaram em absoluto.
Top10 HQs mais vendidas em 2019:
1 – Detective Comics #1000 (DC)
2 – Spawn #300 (Image)
3 – X-Men #1 (Marvel)
4 – Gata Negra #1 (Marvel)
5 – DComposição #1 (DC)
6 – Carnificina Absoluta #1 (Marvel)
7 – Marvel Comics #1000 (Marvel)
8 – Dinastia X #1 (Marvel)
9 – Potencias de X #1 (Marvel)
10 – Guerra dos Reinos #1 (Marvel)
O que faltou de diversidade em 2018, sobrou em 2019. Começando com Spawn, um personagem negro. Depois X-Men, Dinastia X e Potencias de X, histórias ligadas a franquia mutante e que abordaram diversas pautas pertinentes. Teve a Gata Negra, mais uma personagem feminina da Marvel que brilhou muito. E então Guerra dos Reinos, que teve como destaque a participação de Jane Foster, a Poderosa Thor.
Top10 HQs mais vendidas de 2020:
1 – Wolverine #1 (Marvel)
2 – Mulher Maravilha #750 (DC)
3 – Thor #1 (Marvel)
4 – Mulher-Aranha #1 (Marvel)
5 – Star Wars #1 (Marvel)
6 – X-Men #4 (Marvel)
7 – X-Men #6 (Marvel)
8 – Batman #91 (DC)
9 – Batman #90 (DC)
10 – Flash #750 (DC)
Personagens femininas como a Mulher Maravilha e a Mulher-Aranha recebendo o destaque que merecem e mais uma vez os X-Men fazendo sucesso.
Então, como nós explicamos com números e também com exemplos, os quadrinhos não estão em queda. E mesmo se estivesse, a diversidade não seria a culpada, pois muitos títulos diversos seguem figurando entre os mais vendidos. Nós listamos apenas as 10 HQs mais vendidas no ano, mas são MILHARES de títulos ofertados anualmente no mercado.
Aproveito para resgatar uma fala de Joe Quesada, ex-Editor-Chefe da Mavel e atual Chefe Criativo da Marvel Entertainment, em 2017, ao ser questionado sobre o mercado de quadrinhos, e principalmente a Marvel, estar em queda (lembrando que 2017 foi o único ano que o mercado não cresceu). Confira o que ele respondeu:
“E [risos] essa é a única indústria que eu conheço, que na minha experiência – e eu já trabalho com quadrinhos por 27, 28 anos – está conscientemente prevendo a sua morte todos os anos. Sempre tem “É isso aí, é o fim dos quadrinhos”.
E eu acho impensável quando algumas pessoas falam que a casa ta pegando fogo, as nossas vendas ainda são melhores do que a dos nossos concorrentes, nossos filmes ainda são hits, ainda somos líderes da indústria. É insano para mim [risos] mas as pessoas veem o que querem ver. Houve alguns solavancos no caminho? Óbvio. Mas sempre há solavancos na estrada. Minha filosofia para isso é sempre a mesma: se você aprender com os percalços, essas são enormes oportunidades, não apenas para resolver o problema, mas para melhorar o que você faz“.
Mas e então, caro leitor, você já tinha lido por aí que os quadrinhos estão em decadência? Envia esse texto para aquele seu amigo que espalhou a fake news. E aproveita e deixa a sua opinião nos comentários.