As faces do Estranho: a desconstrução do Mago Supremo

Em 2016, com o advento do personagem no MCU e a chegada da polêmica fase Totalmente Nova e Diferente Marvel (All-New All-Different Marvel), a editora decidiu que era hora de dar um título novo ao Doutor Estranho e confiou essa missão à dupla Jason Aaron e Chris Bachalo. Basicamente, os mesmos autores de Wolverine and the X-Men (2011-2014).

A última fase regular do personagem foi publicada em meados dos anos 90, mais precisamente entre 1988 e 1996, fechando um total de 90 edições, fora anuais e especiais. De lá pra cá, o personagem passou a funcionar como coadjuvante em diversas histórias de outros heróis da editora.

Por diversas vezes Stephen Strange foi retratado apenas como uma espécie de consultor dos demais heróis para assuntos sobrenaturais, como no arco Diabo da Guarda em Demolidor de Kevin Smith e ao longo do run de J. Michael Straczynski em The Amazing Spider-Man. Em outras situações Stephen adotou um papel mais central, como na Dinastia M, nos Novos Vingadores de Brian Michael Bendis e, principalmente, na série dos Novos Vingadores de Jonathan Hickman, sendo esta fase o ápice do personagem.

Doutor Estranho atuando como consultor de outros heróis. Foto: Marvel Comics.

Durante esse período dos Novos Vingadores, Stephen Strange não é apenas um dos agentes diretos na oposição às incursões, mas também uma das mentes por trás de todos os atos dos Illuminatti. Além disso, Hickman o coloca basicamente como uma das armas máximas da equipe, um “Deus Ex Machina” personificado.

Sua caracterização é ao mesmo tempo assustadora e surpreendente. Strange usou de tudo que podia para salvar o mundo, buscou ir além dos seus limites, tanto físicos quanto morais, para agir em nome do seu “heroísmo”.

…mas isso não teria um preço? Se depender de Jason Aaron, sim.

Doutor Estranho falando sobre “O Preço” da Magia. Foto: Marvel Comics.

Após este hiato de aproximadamente 19 anos, o personagem volta enfim a ter sua revista solo. Jason Aaron não tinha em mãos apenas a necessidade de superar o apelo do personagem em Novos Vingadores, ele também tinha a missão de torná-lo relevante para o Universo Marvel e colocá-lo no topo das figuras arcanas da editora. Que melhor maneira de realizar tal objetivo senão através de uma gradual desconstrução do personagem?

O autor começa propondo no primeiro arco de sua fase, O Método Estranho (The Way of the Weird – Doctor Strangre V4 #1-6), no qual ele estabelece que a magia cobra o seu preço, e claro, sendo Stephen o Mago Supremo o custo para ele é bem caro.

Sinceramente, sempre considerei que Doutor Estranho é um personagem um tanto complicado do leitor sentir empatia. Stephen é um homem maduro, hábil neurocirurgião e mestre nas artes arcanas. Esse com certeza não é o perfil da maioria dos leitores de quadrinhos, e mesmo que sua caracterização impressione, o personagem também possuía uma certa arrogância que o distanciava da realidade. O Doutor não é um personagem com o qual alguém se identifique facilmente à primeira vista.

Esse é justamente um dos pontos mais interessantes na fase de Jason Aaron à frente do personagem. O autor, de certa maneira, humaniza Stephen, desconstruindo a figura imponente que ele sempre representou, colocando-a frente a frente com diversos dos seus problemas pessoais, aproximando o Mago Supremo de um plano mais concreto e terreno, mesmo trabalhando com elementos surreais. Além disso, traz dois novos vilões que se opõem perfeitamente ao Mago.

O primeiro e mais importante é o Empirikul. O autor emula uma outra criação sua, Gorr, o Carniceiro dos Deuses, das histórias do Filho de Odin em “Thor: O Deus do Trovão” e o adapta competentemente ao mundo de Doutor Estranho. O vilão não se opõe apenas a Estranho, ele se opõe à magia como um todo, seu antagonismo é conceitual. É a Ciência contra Magia. O uso de conceitos práticos e empíricos em oposição aos pressupostos metafísicos e espirituais.

O segundo vilão é o Senhor Sofrimento, uma criatura formada a partir da materialização de toda dor e miséria pela qual o personagem passou. Como dito antes, Stephen, até este ponto, nunca havia precisado encarar qualquer tipo de custo ou preço em relação aos seus atos e decisões, e é justamente nesse ponto que se desenvolve essencialmente toda essa fase. Apesar de soarem clichés, as ideias são necessárias na oposição ao grande mago.

A belíssima capa de Doctor Strange #20 por Chris Bachalo. Foto: Marvel Comics.

O Empirikul literalmente destrói a magia, sobrando apenas resquícios dela, enquanto o Senhor Sofrimento é a representação das consequências contra o Mago Supremo, atingido-o diretamente em sua vida pessoal.

Além de introduzir elementos novos, Aaron revisita diversos personagens clássicos do cânone de Strange, como Barão Mordo e Dormmamu, assim como reintroduz o personagem Orbe, resgatando parcialmente o plot de Pecado Original.

A arte de Chris Bachalo está melhor do que nunca. Psicodélicos, seus traços e enquadramentos abraçam o insano e o diferente, tratando a magia dentro do Universo Marvel de uma forma poucas vezes vista ao longo de toda a história da editora.

Por vezes Bachalo retrata Strange de forma extremamente expressiva, em contraponto ao apreço que o Mago Supremo tem por tudo aquilo. A arte demonstra com maestria o fato do Mago viver em meio ao caos durante todos os momentos de sua vida nada normal.

Cabe aqui um destaque para os momentos em que somos apresentados ao modo pelo qual Stephen enxerga o sobrenatural, sobreposto ao cotidiano das pessoas comuns.

Tornando as pessoas e os ambientes em preto e branco e colorindo apenas os elementos mágicos nas cenas, Bachalo expõe a solidão na qual vive Strange em sua insólita missão de proteger a Terra das ameaças místicas.

Representação de como Stephen enxerga a magia no dia a dia. Foto: Marvel Comics.

O uso expressivo das cores na representação de magia confere um aspecto lisérgico às histórias do personagem que em muito lembram as histórias clássicas de Steve Ditko à frente do personagem.

Em suma, a abordagem apresentada por Aaron ao Mago Supremo é diferenciada, de maneira que mesmo quando revisita elementos clássicos, não deixa de apresentar o personagem mais desgastado e cansado do que nunca, aparentemente prestes a cair em desespero.

O preço cobrado não se fixa apenas nas questões fisiológicas, como as úlceras e os vômitos, mas também se estende à sua vida pessoal. O uso demasiado da magia, coloca sua relação com Wong em risco e Stephen acaba por ter de lidar com a partida de seu grande amigo, que vai embora e deixa Strange apenas com a companhia de sua jovem aprendiz, Zelma Stanton.

Zelma encarando a realidade de Stephen Strange. Foto: Marvel Comics.

Falando nela, Zelma foi criada por Jason Aaron nesta fase e surge logo na primeira edição de Doctor Strange (2015). Ela é basicamente um ponto de equilíbrio na história. A personagem surge como alguém buscando ajuda, já que surgiram “dentes” em sua cabeça.

Ao se envolver com Stephen, Zelma que até então era uma mera bibliotecária, passa a viver naquele mundo, auxiliando o Mago Supremo e organizando seus inúmeros livros. A personagem é basicamente uma contraposição a toda aquela psicodelia mágica que envolve Strange. Sua presença é a representação do mundano ao mesmo tempo que ainda estabelece uma conexão do personagem título com a realidade física.

Um dos problemas desta fase é o fato dela não dialogar com a fase do personagem em Novos Vingadores de Jonathan Hickman. Os dois períodos poderiam facilmente fazer parte um do outro, dizendo que todos os acontecimentos são consequências diretas dos atos do Mago Supremo anteriormente, contudo não é o que acontece.

Como dito inicialmente, Aaron tinha em mãos a obrigação de reestabelecer o personagem como uma das figuras centrais do Universo Marvel, e de certa forma o fez. Aquele que outrora foi um dos líderes dos Sacerdotes Negros, passando pela posição de Xerife do Deus Destino em Guerras Secretas, agora precisa enfrentar ele mesmo e seus problemas, seja atuando como médico espiritual ou bebendo entre conhecidos no Bar Sem Portas, onde os personagens místicos se encontram.

 

Esta análise considera os quatro arcos de Doutor Estranho escritos por Jason Aaron: Doctor Strange Vol. 1: The Way of the Weird (Doctor Strange #1-5); Doctor Strange Vol. 2: The Last Days of Magic (Doctor Strange#6-10 e Doctor Strange: Last Days of Magic); Doctor Strange Vol. 3: Blood in the Aether (Doctor Strange #11-16); Doctor Strange Vol. 4: Mr. Misery (Doctor Strange #17-20 e Doctor Strange Annual #1).

Destaca-se que atualmente essa fase se encerrou pela Panini nos títulos mensais em março de 2018, em um total de 15 edições.

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