Retcons são heróis ou vilões no Universo Marvel?
Quadrinhos são bastante conhecidos por ser uma mídia contínua, que no caso da Marvel é bastante longa. O Universo Marvel existe desde 1939, e, rigorosamente, tudo o que é publicado desde essa época é válido para a cronologia das histórias. No entanto, como dar continuidade a um volume de histórias tão massivo, que se estende por tantas décadas? A Distinta Concorrência investe pesado em reboots desde os primórdios de sua criação, reorganizando os seus universos e começando as histórias do zero.
A Marvel, entretanto, nunca apertou um botão de renovação. A estratégia da Casa das Ideias foi sempre de utilizar o recurso da continuidade retrospectiva, comumente chamada de retcon, isto é, elementos da história são narrados de forma retroativa, de modo que as alterações se encaixem na cronologia.
Muitas vezes os fãs se irritam com retcons, afirmando que eles descaracterizam anos de história ou que não fazem sentido na cronologia de dado personagem. Mas afinal, retcons são danosos ou benéficos para a continuidade dos quadrinhos na Marvel? Vejamos alguns exemplos.
Os polêmicos retcons
Mais recentemente, um retcon bastante polêmico dentro do escopo da editora foi relacionado à paternidade dos gêmeos Maximoff. Na saga Eixo, de 2014, após realizar um feitiço que torturaria aqueles que compartilham seu sangue, Wanda Maximoff percebeu que Magneto, seu suposto pai, não foi vítima da agonia do feitiço. Isso comprovou que a paternidade da Feiticeira Escarlate e do Mercúrio não era de Magneto, e que seus verdadeiros pais eram um mistério. Essa mudança pode ser justificada pela separação entre os direitos cinematográficos dos gêmeos e de Magneto entre FOX e Marvel, algo que não será abordado em detalhes aqui.
Apesar de sagas como Era do Apocalipse e Dinastia M se pautarem prioritariamente nessa relação familiar entre Magneto e os gêmeos, o que fez com que grande parte das histórias dos anos 1990 e 2000 se focassem nesse viés, poucos sabem que tal paternidade também é um retcon. Originalmente, os gêmeos foram considerados filhos de Magneto quase 20 anos após sua criação, em 1983, na série O Visão e a Feiticeira Escarlate, de Bill Mantlo. Até então, eles eram apenas antigos membros da Irmandade de Mutantes. Portanto, um retcon polêmico, que destruiu uma relação familiar adorada por muitos fãs, é apenas a dissolução de um outro retcon mais antigo.
É possível perceber que, muitas das vezes, os retcons são motivados por fatores externos. Nesse caso recém-abordado, são os direitos cinematográficos, em outros, a coerência com fatos históricos. No início da era dos quadrinhos da Marvel, a guerra que baseava as origens dos heróis e vilões era a Segunda Guerra Mundial. Já durante a criação dos X-Men, a participação do Professor X em um conflito real foi na Coreia. O Justiceiro havia lutado na Guerra do Vietnã.
Mas como personagens como a Viúva Negra, Magneto, Professor X e Justiceiro, na atualidade, poderiam ter participado de guerras tão antigas sem que eles tenham, no mínimo, quase 100 anos de idade? Os retcons entram aí para ignorar essas amarras históricas. O Justiceiro, por exemplo, já pode ter ligações muito mais coerentes na atualidade com a guerra americana contra o terror no Oriente Médio (apesar de que, daqui a 20 anos, isso se torne, mais uma vez incoerente).
A ressurreição de Jean Grey, que atuou como base dos X-Men pelos 20 anos seguintes, também foi fruto de um retcon. A cena da morte da Fênix na lua é bastante famosa. Após assassinar um sistema solar inteiro, a Fênix é julgada pelo Império Shi’ar e se sacrifica por não controlar seus poderes. Para restaurar uma Jean Grey imune de tais crimes, na série X-Factor, de 1986, contaram que Jean Grey e Fênix eram entidades separadas. Enquanto a Fênix atuava entre os X-Men, a verdadeira Jean estava inerte, no fundo do mar. Com esse retcon (um pouco confuso, que também inclui um clone de Jean), foi possível ter a X-Man de volta ao time, para mais uma vez morrer (e ressuscitar).
Retcons são prática comum
A prática é tão importante na Marvel que, em 2014, a saga Pecado Original se restringiu praticamente em apenas contar retcons, explicados por serem informações secretas do Uatu, o Vigia, alguns são: o Homem de Ferro (que recentemente havia descoberto que era adotado) esteve envolvido no teste que transformou Bruce Banner no Hulk; Ângela é uma filha perdida de Odin e Freyja; a aranha que picou Peter Parker também picou outra pessoa; o pai de Luke Cage era um Vingador nos anos 70; o Coisa está preso em sua forma monstruosa por culpa do Tocha Humana; e, mais importantemente, Nick Fury sempre foi um protetor intergaláctico de ameaças contra a Terra. Notavelmente, alguns retcons são fracos e não vão para frente, sendo ignorados, enquanto outros são levados mais a sério. Essa flexibilidade, de certa forma, diminui os potenciais danos que eles podem trazer.
Retcons aclamados pelo público, no entanto, são levados adiante. Um dos mais radicais é o retorno de Bucky Barnes como Soldado Invernal. Bucky foi dado como morto assim que o Capitão América é resgatado do gelo, em 1964. Mais de quarenta anos depois, é revelado que o parceiro do Capitão América nunca morreu, mas sim foi resgatado por soviéticos, sendo manipulado e treinado para se tornar o assassino mais letal e secreto do século XX, o Soldado Invernal. Até hoje, Bucky Barnes tem relevância grande no Universo Marvel e em outras mídias.
O retorno do Capitão América aos tempos modernos é o melhor caso que comprova como retcons são fundamentais para a construção da cronologia da Marvel. A história sobre o congelamento e a luta contra o Barão Zemo na Segunda Guerra Mundial foi toda contada de forma retroativa, possibilitando que, hoje, tenhamos Steve Rogers convivendo com os heróis criados na era moderna da Marvel. O próprio Barão Zemo, personagem relacionado à Segunda Guerra, foi criado apenas nos anos 60, assim como muitos outros, tendo destaque a ideia e os personagens secundários dos Invasores.
É impossível imaginar a Marvel sem o Capitão América liderando os Vingadores, assim como é impossível imaginar que os autores sejam obrigados a lidar com tudo o que foi publicado de forma extremamente rígida. A flexibilidade fornecida pelos retcons na narração das histórias pode trazer certas deturpações (que muitas vezes são ignoradas), mas as restrições ocasionadas pela falta deles pode ser considerada como muito mais danosa. A alta frequência do uso de retcons para contar histórias na Marvel não é recente, ela é uma identidade primordial da editora desde seus primórdios, e, sem eles, é certo que o Universo Marvel seria muito diferente. Não estaria carente apenas do Capitão América, mas também dos Guardiões da Galáxia, por exemplo, que são exemplos de personagens que passaram por frequentes retcons e mudaram drasticamente desde o momento das suas criações.
Aparentemente, retcons destroem a cronologia, mas, se considerarmos que muitas das vezes eles amarram pontas soltas, deixadas anos antes (como o retcon da turma secreta de X-Men de Gênese Mortal), é possível dizer o oposto: retcons constroem cronologia. Portanto, antes de precipitadamente encararmos um retcon como uma descaracterização rasa, é importante avaliar os impactos no passado, presente e futuro da editora causados por ele.