Na segunda semana de setembro, a revista dos Campeões trouxe em suas páginas o retrato de um assunto que tem ganhado destaque nas manchetes de jornais e discursos políticos neste ano de eleições: tiroteios em massa e o controle sobre porte de armas.
Intitulada Trigger Warning, ou ‘Alerta de Gatilho’, a história traz para perto dos heróis os perigos de um atirador dentro de uma escola e seu impacto nas vidas dos jovens afetados pelo incidente.
Na trama da revista, os Campeões são subitamente interrompidos pela notícia de que um tiroteio em massa teria ocorrido na Academia Brooklyn Visions, escola onde o Homem-Aranha (Miles Morales) estudava. Ao chegar no local, Miles recebe a notícia de que o massacre havia vitimado sete pessoas e ferido outras dezoito, incluindo o mutante Bolas Douradas (Fábio Medina), que mesmo tendo poderes não conseguiu se defender a tempo.
Ao longo do restante do quadrinho, os personagens lidam com as consequências da tragédia, participando de terapias, simulações de emergência e desabafando sobre o sentimento de impotência – e como até os super-heróis não são capazes de salvar todo mundo.
Desde seu lançamento, em outubro de 2016, Campeões traz histórias mostrando um grupo de justiceiros adolescentes poderosos, a equipe tem sido incluída em debates com um teor político, como aquecimento global, imigração ilegal, terrorismo, fundamentalismo religioso, desigualdade de gênero e tráfico humano.
Trazer a pauta de tiroteios em escolas em um gibi que foca em adolescentes – muitos ainda no ensino médio – foi então a medida escolhida pela Marvel para tratar do assunto, que vem tomando os noticiários americanos em peso desde o começo do ano, quando um jovem entrou armado no Stoneman Douglas High na Flórida, Estados Unidos, matando dezessete pessoas e ferindo outras quinze – a maioria estudantes de 14 a 18 anos, a mesma idades dos personagens da revista.
E massacres em escolas não são novidades nos Estados Unidos. Desde o mais famoso caso, o atentado de Columbine em 1999, que deixou doze vítimas, até a chacina de 2012 na Escola Primária Sandy Hook, em Newtown, que vitimou vinte crianças com idades entre 6 e 7 anos e mais oito adultos. Desde este último, foram 1.885 massacres envolvendo arma de fogo pelo país – 297 só em 2018, ao longo de 302 dias do ano; praticamente um por dia.
No Brasil, a violência armada em escolas já foram notícia. Em 2011, 12 crianças foram mortas no que ficou conhecido como o Massacre de Realengo, em um colégio no Rio de Janeiro. Em 2017, no Colégio Goyases, em Goiás, dois alunos foram assassinados por um colega de classe. Este ano, pelo menos outros dois incidentes foram registrados só nos últimos dois meses, no Paraná e em Mato Grosso do Sul.
Em entrevista ao site Newsrama, o roteirista da série, Jim Zub (Fabulosos Vingadores), afirmou que a ideia da história surgiu graças à iniciativa da Marvel de retratar eventos do mundo real nas tramas. “Isso se tornou um tópico grande demais para ignorar. De todas as revistas da Marvel, pareceu a mais apropriada para refletir sobre violência armada e as consequências de uma tragédia“, Zub afirmou.
Após o incidente em Stoneman Douglas, jovens americanos se mobilizaram em massa para tentar impor legislações mais rigorosas de controle de armas no país. A ação March For Our Lives (Marchem Pelas Nossas Vidas), em março de 2018, reuniu 2 milhões de pessoas, organizada majoritariamente por adolescentes e encabeçada por sobreviventes do massacre, pedindo pelo banimento de armamentos pesados (como o rifle AR-15, usado no massacre) e extensão da checagem de antecedentes para todas as compras de armas no país.
A campanha é fortemente combatida por organizações como a National Rifle Association of America (NRA), o maior lobby pró-armas do país, responsável por pressionar senadores a derrubar leis como a de verificação de antecedentes criminais para compradores.
Nos Estados Unidos, a posse de armas é prevista pela segunda emenda à constituição e é uma das legislações mais importantes para grande parte dos americanos, que se apoiam no “direito de se defenderem” para manter a lei.
Entretanto, um estudo de 2007 realizado pela Universidade de Harvard mostrou que países desenvolvidos com mais armas tendem a ter um maior número de homicídios. Da mesma forma, estados americanos com uma proporção maior de revólveres também possuem maiores índices de homicídios.
Pesquisas também apontam que para cada “morte justificável” (a morte de um criminoso durante o ato de um crime, feita por um cidadão privado) por arma de fogo, ocorrem 34 homicídios criminosos, 78 suicídios e duas mortes acidentais no país. No Brasil, 56,5% das mortes de homens entre 15 a 19 anos são homicídios. Para quem se escora na teoria de que quem promove chacinas são “doentes” ou “desequilibrados”, outra pesquisa apontou que apenas 3% dos casos de violência armada foram cometidos por pessoas que sofrem de distúrbios mentais.
Nas páginas finais da revista dos Campeões, os heróis ficam diante do dilema entre encarar o desespero ou brigar pela esperança, optando por seguir em frente após a tragédia e lutar por mudança. De forma semelhante, ações como o March For Our Lives, mobilizadas pela juventude politizada, podem estar mudando a forma como os americanos enxergam as leis de posse de armas. Segundo dados levantados pela CNN nos Estados Unidos, 7 em cada 10 americanos já apoiam medidas mais restritivas às armas; 60% acreditam que tornar o acesso às armas mais limitado pode diminuir o número de chacinas.
Talvez a mudança esteja nas mãos dos jovens, que cresceram em um mundo onde aprenderam a desviar de balas antes de aprender a ler, parafraseando Edna Chavez, sobrevivente do massacre de Stoneman Douglas.
“[…] Esse é o mundo que estamos herdando, onde a violência fala mais alto. Mas podemos ser melhores do que isso. Nós temos que começar a fazer justiça sem usar uma força desproporcional. […] Nos ajudem a vencer do jeito difícil – do jeito certo – sem ódio, nem retaliação, mas com sabedoria e esperança, nos ajudem a ser Campeões.“
– Kamala Khan, Campeões Vol 2 #1
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