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Quadrinhos podem ser mais do que entretenimento vazio

 

Eu não sou mulher, nem homossexual e muito menos negro. Não faço ideia de como as pessoas que se encaixam em uma dessas características sofrem no dia a dia. Mas tem uma história em quadrinhos que eu tenho acompanhado nos últimos 3 anos que tem me permitido sentir uma representatividade tão grande que me emociona a cada edição. E isso me mostrou que sim, elementos como a representatividade podem (e devem) ser usados como motores das narrativas.

Representatividade é se enxergar na história

Em 2015 minha mãe foi diagnosticada como um Linfoma, um tipo raro de câncer. Existem diversas variações do Linfoma e ela acabou tendo um dos mais agressivos. A doença foi descoberta no final de agosto e ela lutou com a doença até metade de dezembro. Foram cerca de 5 meses atípicos, onde vivenciei de perto todos aqueles dilemas da doença que a gente muitas vezes só vê no cinema ou na novela.

Ela passava por enormes sessões de quimioterapia. Ficava fraca, com olfato hiperaguçado, não tinha fome nenhuma. Se antes suava com qualquer coisa, passou a sentir frio até nos dias mais abafados. Enfim, a vida dela mudou radicalmente e eu fui uma testemunha diária dessa luta. Seja nos períodos em que ficou em casa ou mesmo quando passou meses internada em um quarto de hospital do SUS.

Mas o que isso tem a ver com a Marvel? Simples, a Thor. A editora passou a publicar em 2014 a revista da Thor, o que em um primeiro momento rendeu as maiores críticas do mundo, por estar transformando um Deus Nódico em uma mulher. Bom, quem acompanhou as histórias entendeu que não se tratava de uma transformação. O Thor clássico continuou a existir, só que agora foi criada uma versão diferente.

A Thor é uma heroína que se transforma ao punhar o mágico martelo Mjölnir. Quando está longe dele, ela apenas é Jane Foster. Uma médica, com câncer de mama, que entre as lutas para salvar o dia, precisa passar por sessões de quimioterapia.

Na primeira edição da revista, o escritor Jason Aaron, cria uma caixa narrativa onde a personagem descreve todas as sensações de passar pelo tratamento quimiterápico.  Colo aqui uma pequena parte do genial roteiro:

“Você pensaria que iria queimar. Todo aquele veneno entrando em suas veias. Mas ao invés disso eu sempre penso que estou congelando até a morte. Pelas primeiras poucas horas, pelo menos. O calor vem depois, queimando de algum lugar lá no fundo, que nem um vulcão em erupção nas minhas tripas. Eu vomito lava e urino produtos químicos vermelhos. E então saio a luz do dia, assando por dentro e por fora.

Amanhã eu estarei mais exausta do que já estive em toda a minha vida. Minhas mãos ficarão paralisadas. Minha boca cheia de feridas. Eu vou deitar na cama, tentar não vomitar, sentindo-me estranha na minha própria pele. Minha própria pele ofegante e careca.

E então, em algum dia durante a semana, minha mente começará a ir embora. Químio cérebro, como chamam. Eu vou divagar e perder meu discernimento mental.  Eu vou esquecer os nomes dos meus amigos. Eu vou ver o mundo ao meu redor como uma névoa. Ao final da semana eu vou ter percebido pela centésima vez que, exceto pela parte de eu estar morrendo, ter câncer é muito mais fácil do que se livrar dele.

E então, eu terei alguns dias para me sentir bem. Alguns dias para viver a vida como uma pessoa normal. Ou pelo menos, o mais normal que eu puder. Antes que eu tenha de vir aqui e fazer tudo isso de novo”.

Esse roteiro ocorre enquanto a personagem recebe mais uma dose de remédios. Dá para ver, apenas por isso, que essa é uma HQ diferenciada, que sabe tratar com muito tato um assunto bastante delicado e humano. Fora os sintomas mais agressivos da quimioterapia, que minha mãe acabou não tendo pois não chegou ao fim do ciclo das sessões, cada uma das demais frases me fez lembrar exatamente da minha mãe. Sem tirar nem por.

 

A mitologia nórdica e os prêmios

Claro que ainda estamos falando de uma história em quadrinhos. A personagem também luta contra elfos, gigantes de gelo e outros elementos da mitologia nórdica. Mas acima de tudo a Thor é humana. E cada vez que ela se transforma na Deusa do Trovão, ela elimina as toxinas do seu corpo e a quimioterapia perder o efeito. Ou seja, cada vez que ela salva o dia, ela fica mais próximo da morte.

Eu realmente fiquei emocionado com esse roteiro e fico pensando nas outras pessoas, que também passaram pelo mesmo processo e que podem ter lido essa HQ. Não sei se o escritor Jason Aaron também vivenciou de perto toda essa experiência e tem conseguido levar com tanto cuidado para as páginas da publicação, mas é um trabalho realmente surpreendente. Não é a toa que a Thor consta nesses três anos em praticamente todas as listas de melhores revistas em quadrinhos do ano e que em 2016 o Jason Aaron venceu o Prêmio Eisner, o maior prêmio dos quadrinhos, na categoria de melhor escritor.

Muitas pessoas criticam essa publicação da Thor por ser uma mulher assumindo um papel que outrora pertenceu a um homem. Mas é muito mais do que isso. E eu sou eternamente grato ao escritor Jason Aaron por ter conseguido me fazer ficar próximo da minha falecida mãe enquanto eu leio uma história em quadrinhos. Essa é a mágica da coisa.

Redação Jamesons

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