Tem rolado por algum tempo nos Estados Unidos o movimento ComicsGate, uma iniciativa encabeçada por criadores de quadrinhos norte-americanos conservadores, que entendem que a ruína do mercado está no fato das grandes editoras, principalmente a Marvel, darem espaço para personagens e criadores de diversidade.
Um dos movimentos mais conhecidos do ComicsGate foi o ataque sofrido pela escritora Chelsea Cain, quando a mesma escreveu uma HQ da Harpia onde a heroína aparecia napa capa vestindo uma camiseta com o seguinte texto: “Pergunte-me sobre minha agenda feminista“. Falamos sobre o assunto no texto Por que os leitores de quadrinhos não merecem Chelsea Cain, então não vamos nos alongar aqui.
Outra situação envolvendo o movimento ocorreu com a ex-editora assistente da Marvel, Heather Antos. Após a morte da lendária funcionária da Marvel, Flo Steinberg, que foi secretária de Stan Lee lá nos primórdios da Marvel, Antos e demais funcionárias da editora se reuniram após o expediente para celebrar a vida de Flo. O registro feito por Heather no Twitter foi alvo de um ataque de preconceituosos, que enviaram mensagens como “Isso explica a ‘qualidade’ que a Marvel tem apresentado atualmente“. Abordamos esse assunto já no texto Entenda como a Marvel dessexualizou as suas heroínas nas HQs.
O movimento se entende com uma genuína preocupação com a decadência do mercado. Em 2017, a indústria dos quadrinhos dos Estados Unidos teve uma queda de 10% nas vendas, se comparado à 2016. Foi a maior queda súbita desde 1998.
O ComicsGate então se posiciona como um movimento que busca reerguer o mercado. O problema está no fato de seus idealizadores entenderem que o mercado decaiu em decorrência da diversidade e representatividade. Para os líderes do CG, a contratação de escritores negros, gays e do sexo feminino, por exemplo, se deu apenas por questões de agenda política, não pela qualidade. E que isso, somado aos personagens de diversidade que ganharam destaque nas HQs recentemente, estaria causando a crise.
A imagem acima é um print de um influente canal no Youtube que tem pregado discursos de ódio contra boa parte dos criadores e revistas do mercado. Como fica evidente nessa imagem, há um clima de paranoia, de situações tiradas de contexto e acusações pesadas e infundadas. O mais assustador é que esse canal, cujo nome não será revelado para não fazer propaganda, já possui mais de 89 mil inscritos e uma média de 20 mil views por vídeo.
Um dos líderes do movimento, é o Youtuber responsável por este canal: Richard Meyer. Ele grava vídeos diários, caseiros, sem mostrar o seu rosto, folheando as HQs e atacando e incitando o ódio contra os criadores e as publicações. Em entrevista ao Daily Beast, explicou o seu posicionamento mais enérgico quanto à diversidade: “Comecei a perceber coisas muito estranhas. Feminização dos homens, masculinização das mulheres, basicamente, todas os casais heterossexuais clássicos estão sendo destruídos … você percebe que isso é uma tendência, e você começa a se perguntar por que eles estão fazendo isso. Por que Luke Cage, o cara durão de blaxploitation por excelência, por que ele está empurrando um carrinho de bebê e é um palerma com fala mansa – isso não é feito por acaso“.
Obviamente a fala de Meyer não passa de um grande exagero, a feminização dos homens não existe, a masculinização das mulheres a que ele se refere é o fato das heroínas não lutarem mais de maiô e o Luke Cage virou pai, então é natural que ele mude a sua postura. O mesmo vale para a sua eterna propagação da ruína do mercado. O Youtuber também ficou “famoso” por instigar seus seguidores a atacarem, criticarem e boicotarem escritores com trabalhos voltados para a diversidade.
Outro líder do movimento é o desenhista Ethan Van Sciver (Lanterna Verde). Dentre tantas polêmicas, destaco uma em que ele se envolveu em maio de 2017. Naquela época, artistas promoveram em seus perfis nas redes sociais um diálogo sobre a depressão e o suicídio. Sciver, sem nenhuma sensibilidade, passou a sugerir que alguns leitores se matassem.
O escritor Paul Jenkins (Inumanos), no seu perfil pessoal do Facebook, escreveu um relato sincero e emocionante sobre o papel e a influência dos escritores. Contou a história de como, sem fazer a mínima ideia, apenas pela influência de uma das HQs que escreveu, impediu que um jovem cometesse suicídio.
O relato é muito bonito e emocionante, reproduzo ele abaixo:
Ethan se desculpou deletou algumas das suas contas no Facebook, mas seguiu incentivando o ComicsGate no Twitter. Quando seu contrato de exclusividade com a DC se encerrou, ele passou também a se dedicar ao trabalho de Youtuber, interagindo bastante com o já mencionado Richard Meyer.
Outro artista que se soma à dupla e forma o rosto público do ComicsGate é o desenhista John Malin (Cable), que no cúmulo da sua ignorância, chegou a comparar os SJW (Guerreiros da Justiça Social, pessoas que incentivam a diversidade), com nazistas.
Mas enfim, para entender detalhe por detalhe o que é o ComicsGate, recomendo que você leia o ótimo texto feito pelo site Nebulla sobre o assunto. Traz todos os dados e contextualizações em ordem cronológica.
A polêmica envolvendo o ComicsGate ressurgiu recentemente após uma nova polêmica envolvendo o movimento, o falecido artista Darwyn Cooke e também Marsha Cooke, a sua esposa. Cooke faleceu em 2016 e o movimento, em agosto de 2018, passou a propagar a informação de que ele apoiaria o ComicsGate.
Darwyn Cooke foi um dos principais desenhistas da sua geração e teve trabalhos de grande destaque na DC Comics. E por algum motivo, os ativistas do ComicsGate acreditaram que ele seria um apoiador do movimento. Inclusive, falaram que tinham provas em vídeo sobre isso.
Acontece que, sabendo do uso de Darwyn para apoiar o ComicsGate, a viúva Marsha Cooke foi até o Twitter responder o movimento: “Oi rapazes, eu sou a esposa de Darwyn e eu posso garantir que ele achava que vocês idiotas do ComicsGate eram um bando de chorões perdedores estragando os quadrinhos. Porque vocês são“.
A resposta, obviamente não agradou a galera do ComicsGate. E assim como no passado já havia acontecido com Chelsea Cain e Heather Antos, agora quem passou a ser vítima de assédio foi Marsha Cooke.
Se algo bom pode ser tirado dessa situação, foi que finalmente a comunidade dos criadores de quadrinhos pareceu levar o movimento ComicsGate a sério. Até então, fora casos pontuais de autores que sofreram ataque, não haviam manifestações tão contundentes.
Mas agora, em defesa de Marsha Cooke, a comunidade em peso se manifestou em sua defesa. Alguns dos comentários mais importantes foram dos criadores Bill Sienkiewicz (Novos Mutantes), Tom Taylor (X-Men Red) e Jeff Lemire (Sentinela), que reproduziremos aqui:
O depoimento de Bill Sienkiewicz (tradução do site Nebulla):
O depoimento de Tom Taylor:
Apesar de simples, a fala de Taylor resume muito bem a situação e deixa bem claro o seu posicionamento. Inclusive, ele tem trabalhado muito bem a intolerância nas páginas da sua atual revista, X-Men Red. O seu tweet, de tão impactante, acabou viralizando.
Boa parte dos escritores, desenhistas, editores, letristas, coloristas e demais profissionais que trabalham com quadrinhos passaram a retweetar a declaração.
O depoimento de Jeff Lemire:
A partir de então, uma enorme discussão tomou a internet, com os criadores se manifestando fervorosamente nas rede sociais. Alguns proeminentes nomes que também abordaram o assunto foram: Gail Simone (Dominó), Neil Gaiman (Sandman), Gerry Duggan (Guardiões da Galáxia), Jordan White (Editor da Marvel), Chelsea Cain (Harpia) e muitos outros.
No início de setembro de 2018, mais polêmica foi implementada pelo ComicsGate. Passaram a criticar a escritora Eve Ewing recém contratada pela Marvel para escrever a revista mensal da heroína negra Coração de Ferro. De acordo com os preconceituosos, o fato da autora não ter experiência nenhuma escrevendo HQs, é um problema.
A crítica, que catalisa suas atenções em Eva, é muito mais profunda. A reclamação é que a Marvel tem contratado profissionais sem experiência, apenas com o viés de agenda política. Outro autor que entra junto na reclamação do movimento é Ta-Nehisi Coates, que atualmente é o responsável pelas publicações do Pantera Negra e Capitão América, mas que começou a escrever quadrinhos apenas em 2016. Até então, seu currículo envolvia “apenas” ser o correspondente da revista The Atlantic, escrevendo sobre cultura, questões sociais e políticas.
Quase que imediatamente em que os ativistas do movimento passaram a usar esse argumento para criticar a Marvel e demais editoras com essa prática, os criadores do mercado como um todo novamente se reuniram para blindar a galera nova do mercado.
Quase todos os criadores usaram as suas redes sociais para contar como ganharam seus primeiros trabalhos com histórias em quadrinhos e como foram contratados por editoras como a Marvel e a DC sem ter experiência na área. Desmontando assim, qualquer argumento do ComicsGate.
Afinal, experiência por experiência, Neil Gaiman era um autor da literatura e em sua primeira investida nos gibis escreveu um clássico chamado Sandman. O que difere Gaiman de Eve Ewing? Ela é formada em Sociologia da Educação, tem doutorado em Harvard, tem pesquisas sociais e escreve livros de prosa. Ela merece menos uma oportunidade para se provar nos quadrinhos?
Obviamente que nesse momento do texto eu estou me fazendo de sonso. Todo mundo sabe que o ComicsGate pegou no pé da Eva apenas por ela ser uma mulher negra. Assim como o Ta-Nehisi também é negro e sofre com críticas semelhantes. A escritora trans, Magdalene Visaggio (Cristal), também entra nesse barco. O que Neil Gaiman tem que essas pessoas não tem? O combo de ser um homem, branco e hétero.
A culpa é do Neil? De forma alguma. Inclusive, Gaiman se juntou no Twitter para expor a falácia do movimento, mostrando que ele também foi contratado para escrever quadrinhos sem nenhuma experiência. Teve até quem tentou discutir com o escritor, querendo saber mais do que ele próprio sobre o seu currículo.
Porém, mesmo com tantos comentários infames e desbancando totalmente a argumentação falha do ComicsGate, o escritor que deu a melhor resposta foi o Chip Zdarsky (Marvel 2-em-1).
Apesar de parecer inicialmente bobo, o comentário diz respeito a forma como Stan Lee entrou na Marvel.
Antes de prosseguir, tenho de registrar que tem uma pegadinha no título do texto e nesse subtítulo. Até o momento em que escrevo esse texto, nenhuma das duas editoras se manifestou oficialmente sobre o ComicsGate, então não se trata da Marvel e DC estarem juntas de uma forma oficial, mas calma aí. O título não foi gratuito, siga a leitura.
Após todas essas polêmicas já citadas, Joe Quesada surgiu. O atual Chefe-Criativo da Marvel possui um dos maiores cargos dentro da editora, ele é superior ao Editor-Chefe. E o que ele fez com a galera do ComicsGate foi louvável.
Quesada se deu ao trabalho de responder todos os comentários dos ativistas, rebatendo todos os argumentos e desmontando qualquer fake news. E para iniciar isso, reproduziu uma carta escrita por Stan Lee, em 1970, onde o lendário roteirista fala sobre política nas histórias em quadrinhos.
Tradução:
O texto do Stan Lee foi escrito em 1970, mas parece que ele acabou de escrever, não?
Quesada foi bastante contundente nas suas respostas aos ativistas do ComicsGate. Esclareceu que não são todas as revistas da Marvel que possuem discussões sociais, que o argumento é propositalmente exagerado e por isso não faz o mínimo sentido. A Casa das Ideias publica sim revistas que propõe discussões, porém tem muitas que não possuem esse viés.
Ele ainda se deu ao trabalho de trazer dados para acabar com a falácia de que a Marvel publicada títulos de diversidade em demasia. Para tanto, pegou como exemplo o mês de novembro, onde apenas na linha principais de super-heróis, 70 revistas serão publicadas. Desse total, cerca de 51 correspondem a a HQs sem nenhum tipo de discussão social no seu mote principal. Já as outras 20, dependendo do seu ponto de vista, poderão ser encaradas como publicações com discussões sociais. Aplicando uma matemática básica, 50 é mais do que o dobro de 20, correto? Joe também apontou que a mesma lógica deve valer para a DC Comics, ele não tem como confirmar, mas brincou que o número lá de revistas sem “pautas SJW” é 52 HQs.
Teve ativista que, inclusive, tentou argumentar que a abordagem das políticas eram muito melhores na época do Stan Lee e que o roteirista jamais aprovaria o que está sendo feito atualmente. Foi então que Joe Quesada precisou lembrar que Stan está vivo, muito bem e ciente sobre tudo o que se passa na editora.
E quando novos militantes surgiram apontando incessantemente que Stan Lee não aprovaria isso, Quesada usou o sarcasmo: “Ei Michael, obrigado por me deixar saber a sua opinião. Você viu ou vai ver o Stan Lee recentemente? Se você o encontrar, diga que mandei um “Olá”. Eu o vi cerca de um mês atrás, com o Todd McFarlane e o Rob Liefeld, e devemos ter deixado passar o momento em que ele disse isso [que não aprovaria a forma como as HQs atuais estão sendo escritas]”.
Teve quem lembrou também que hoje em dia quadrinhos não são mais para crianças, são para adolescentes e adultos. Quesada concordou, mas levantou um ponto bastante interessante: esse não é um fenômeno novo. Para justificar sua resposta, o Chefe-Criativo apontou a capa da revista Rolling Stones #91, de 1971. Nela temos o Hulk em destaque, uma prova de que há quase 50 anos atrás os heróis Marvel já não eram um hobby exclusivo para crianças.
Joe Quesada voltou a ser irônico nas respostas quando o acusaram de contratar pessoas devido a suas agendas ideológicas para escrever “merdas. Eis a resposta: “Droga de novo! Quem continua vazando meus planos malignos para destruir quadrinhos, para causar o meu desempregado e à falência não só da minha família, mas de todos os meus amigos na indústria de quadrinhos?“.
Outro ponto que Quesada levantou foi que nem todas as HQs são para todas as pessoas. Nós já abordamos isso aqui no site no texto Nem todas as HQs foram escritas para você ler, mas é muito mais interessante ver a afirmação saindo da boca do próprio Chefe-Criativo da Marvel.
A conversa de Quesada se estendeu por muitas horas no Twitter, com ele tentando trazer lucidez para líder do CG como John Malin e Ethan Van Sciver, ao mesmo tempo em que alegava que Richard Meyer é um fracassado que lucra promovendo o ódio.
Acontece então que nos dias 15 e 16 de setembro, uma nova situação envolvendo o ComicsGate surgiu. Pipocou na internet uma lista de aposta com os nomes de criadores do meio artístico que poderiam criticar o ComicsGate. Dentre os 16 nomes da lista, aquele demarcado com a maior probabilidade de se manifestar sobre o movimento, acabou se posicionamento ferrenhamente contra o mesmo: Scott Snyder, atual escritor da Liga da Justiça na DC.
Snyder esclareceu que ele é absolutamente contra o ComicsGate, que metade dos alunos do workshop que ele deu para a DC já sofreram ataques virtuais e também explicou o motivo de falar pouco sobre o assunto. “Eu tenho uma política antiga de não dar holofote para toxicidades por aqui. Em vez disso, gosto de usar o Twitter para apoiar os livros, pessoas, valores que gosto“.
Para a surpresa de ninguém, Snyder foi atacado duramente pelos militantes do ComicsGate. Porém, em contrapartida, também recebeu muito carinho dos verdadeiros fãs da DC, que não estão interessados em semear o ódio e preconceito.
E é aí que ocorreu a mágica união da Marvel e da DC. Joe Quesada respondeu um tweet de Snyder chamando o fandom da Marvel para lhe apoiar.
Essa declaração final do Quesada encerra qualquer picuinha entre os fãs. O fascismo, o preconceito, a intolerância, racismo, homofobia, machismo transfobia e todas essas coisas merecem muito mais a nossa atenção do que a eterna discussão de qual mega-corporação é melhor.
Se hoje a Marvel sofre um ataque do ComicsGate, amanhã poderá ser a DC. E precisamos estar unidos. Assim como o Chefe Criativo da Marvel, Joe Quesada, e um dos principais escritores da DC, Scott Snyder, nos mostraram.
Agradecimentos especiais aos nossos redatores John Matos e Jorge Mendes pela colaboração nesse texto.
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