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O dia em que a Marvel e DC se uniram contra o ComicsGate

Tem rolado por algum tempo nos Estados Unidos o movimento ComicsGate, uma iniciativa encabeçada por criadores de quadrinhos norte-americanos conservadores, que entendem que a ruína do mercado está no fato das grandes editoras, principalmente a Marvel, darem espaço para personagens e criadores de diversidade.

Um dos movimentos mais conhecidos do ComicsGate foi o ataque sofrido pela escritora Chelsea Cain, quando a mesma escreveu uma HQ da Harpia onde a heroína aparecia napa capa vestindo uma camiseta com o seguinte texto: “Pergunte-me sobre minha agenda feminista“. Falamos sobre o assunto no texto Por que os leitores de quadrinhos não merecem Chelsea Cain, então não vamos nos alongar aqui.

Outra situação envolvendo o movimento ocorreu com a ex-editora assistente da Marvel, Heather Antos. Após a morte da lendária funcionária da Marvel, Flo Steinberg, que foi secretária de Stan Lee lá nos primórdios da Marvel, Antos e demais funcionárias da editora se reuniram após o expediente para celebrar a vida de Flo. O registro feito por Heather no Twitter foi alvo de um ataque de preconceituosos, que enviaram mensagens como “Isso explica a ‘qualidade’ que a Marvel tem apresentado atualmente“. Abordamos esse assunto já no texto Entenda como a Marvel dessexualizou as suas heroínas nas HQs.

Enfim o ComicsGate

O movimento se entende com uma genuína preocupação com a decadência do mercado. Em 2017, a indústria dos quadrinhos dos Estados Unidos teve uma queda de 10% nas vendas, se comparado à 2016. Foi a maior queda súbita desde 1998.

O ComicsGate então se posiciona como um movimento que busca reerguer o mercado. O problema está no fato de seus idealizadores entenderem que o mercado decaiu em decorrência da diversidade e representatividade. Para os líderes do CG, a contratação de escritores negros, gays e do sexo feminino, por exemplo, se deu apenas por questões de agenda política, não pela qualidade. E que isso, somado aos personagens de diversidade que ganharam destaque nas HQs recentemente, estaria causando a crise.

A imagem acima é um print de um influente canal no Youtube que tem pregado discursos de ódio contra boa parte dos criadores e revistas do mercado. Como fica evidente nessa imagem, há um clima de paranoia, de situações tiradas de contexto e acusações pesadas e infundadas. O mais assustador é que esse canal, cujo nome não será revelado para não fazer propaganda, já possui mais de 89 mil inscritos e uma média de 20 mil views por vídeo.

Um dos líderes do movimento, é o Youtuber responsável por este canal: Richard Meyer. Ele grava vídeos diários, caseiros, sem mostrar o seu rosto, folheando as HQs e atacando e incitando o ódio contra os criadores e as publicações. Em entrevista ao Daily Beast, explicou o seu posicionamento mais enérgico quanto à diversidade: “Comecei a perceber coisas muito estranhas. Feminização dos homens, masculinização das mulheres, basicamente, todas os casais heterossexuais clássicos  estão sendo destruídos … você percebe que isso é uma tendência, e você começa a se perguntar por que eles estão fazendo isso. Por que Luke Cage, o cara durão de blaxploitation por excelência, por que ele está empurrando um carrinho de bebê e é um palerma com fala mansa – isso não é feito por acaso“.

Obviamente a fala de Meyer não passa de um grande exagero, a feminização dos homens não existe, a masculinização das mulheres a que ele se refere é o fato das heroínas não lutarem mais de maiô e o Luke Cage virou pai, então é natural que ele mude a sua postura. O mesmo vale para a sua eterna propagação da ruína do mercado. O Youtuber também ficou “famoso” por instigar seus seguidores a atacarem, criticarem e boicotarem escritores com trabalhos voltados para a diversidade.

Outro líder do movimento é o desenhista Ethan Van Sciver (Lanterna Verde). Dentre tantas polêmicas, destaco uma em que ele se envolveu em maio de 2017. Naquela época, artistas promoveram em seus perfis nas redes sociais um diálogo sobre a depressão e o suicídio. Sciver, sem nenhuma sensibilidade, passou a sugerir que alguns leitores se matassem.

O escritor Paul Jenkins (Inumanos), no seu perfil pessoal do Facebook, escreveu um relato sincero e emocionante sobre o papel e a influência dos escritores. Contou a história de como, sem fazer a mínima ideia, apenas pela influência de uma das HQs que escreveu, impediu que um jovem cometesse suicídio.

O relato é muito bonito e emocionante, reproduzo ele abaixo:

Ethan Van Sciver, gostaria de te contar uma história. É relevante. É sobre como lidar com os fãs, e também sobre suicídio. Desculpe por incomodar o seu dia, companheiro. Eu te conheço apenas um pouquinho. Mesmo assim, você merece ouvir isso.
Anos atrás quando eu estava escrevendo Hellblazer, um dos editores me enviou uma carta que tinha sido enviada para DC. Era de um fã que sofria de depressão, e que tinha tentado cometer suicídio. Essa pessoa tinha passado por uma crise de família, perdendo o pai. Mas na mesma semana, o irmão e a cunhada tinham tido um bebê. Incapaz de conciliar os seus sentimentos de alegria e desespero, a culpa deste fã levou-o a tentar e cometer suicídio na sua garagem.
Isto foi antes da internet. Ele não tinha a certeza de como cometer o ato. E Ele não tinha nem mesmo a certeza se era o que ele queria, então esperoi. Foi uma quarta-feira – dia dos quadrinhos. Então ele foi para a loja comprar uma HQ para ler enquanto se matava.
Mas acontece que ele era fã de Hellblazer. Ele decidiu ler a nova edição dessa semana em primeiro. Por pura coincidência, a história daquele mês foi sobre uma família que teve uma experiência de morte e nascimento na mesma semana. O fã percebeu que ele não estava sozinho na sua experiência, e ele desistiu de tentar se matar.
Anos depois, ele veio me visitar em sessão de autógrafos. Ele ficou lá, em pé, em uma fila limitada, esperando a vez dele, segurando a revista com as duas mãos. Ele estava suando de nervoso. Um monte de fãs pode ser assim. Eu já estou acostumado. Então, eu olhei para ele e, apesar de ele ser muito envergonhado (foi um momento extremamente significativo para ele e eu não fazia ideia) assinei o livro dele. Ele saiu apressado sem me agradecer. Ah bem, eu pensei, isso acontece de vez em quando.
Duas semanas depois ele me mandou um e-mail e me disse que ele era o fã que tinha mudado de ideia durante a tentativa de suicídio no final dos anos 90. Meu Deus do Céu.
Então, escute, Ethan, eu sei que a internet quer o melhor de nós. Eu te vejo com toda essa questão de política, e todo mundo gosta de ficar um pouco rabugento e gritar um com o outro. Mas você é um criador com uma posição de influência, e eu acredito que isso é um privilégio. Suas palavras significam alguma coisa. Suas interações com fãs significam coisas que você nem sempre vai entender imediatamente.
Vai ser sempre um dos maiores privilégios da minha vida, que alguém que estava muito mal, viu algo no meu trabalho que os ajudou. Vamos ser claros: foi uma coincidência. Eu não fiz nada além de escrever um livro que falou com essa pessoa, que fez sentido para ele quando ele estava muito nervoso para conseguir o seu livro assinado.
Lição a todos nós: palavras tem poder, e se estamos em posição de vantagem, devemos tratar aqueles que estão lutando com a decência. Pode fazer a diferença para as suas vidas.

Ethan se desculpou deletou algumas das suas contas no Facebook, mas seguiu incentivando o ComicsGate no Twitter. Quando seu contrato de exclusividade com a DC se encerrou, ele passou também a se dedicar ao trabalho de Youtuber, interagindo bastante com o já mencionado Richard Meyer.

Outro artista que se soma à dupla e forma o rosto público do ComicsGate é o desenhista John Malin (Cable), que no cúmulo da sua ignorância, chegou a comparar os SJW (Guerreiros da Justiça Social, pessoas que incentivam a diversidade), com nazistas.

Mas enfim, para entender detalhe por detalhe o que é o ComicsGate, recomendo que você leia o ótimo texto feito pelo site Nebulla sobre o assunto. Traz todos os dados e contextualizações em ordem cronológica.

Apenas para a informação de todos: a partir do dia 26 de setembro a DC estará publicando a minissérie Heroes in Crisis, que abordará o efeito do Transtorno do estresse pós-traumático nos heróis. Além disso, o mesmo escritor, Tom King, tem abordado situações como o suicídio na minissérie Sr. Milagre e na revista mensal do Batman. Foto: DC Comics.

O caso Marsha Cooke

A polêmica envolvendo o ComicsGate ressurgiu recentemente após uma nova polêmica envolvendo o movimento, o falecido artista Darwyn Cooke e também Marsha Cooke, a sua esposa. Cooke faleceu em 2016 e o movimento, em agosto de 2018, passou a propagar a informação de que ele apoiaria o ComicsGate.

Darwyn Cooke foi um dos principais desenhistas da sua geração e teve trabalhos de grande destaque na DC Comics. E por algum motivo, os ativistas do ComicsGate acreditaram que ele seria um apoiador do movimento. Inclusive, falaram que tinham provas em vídeo sobre isso.

Acontece que, sabendo do uso de Darwyn para apoiar o ComicsGate, a viúva Marsha Cooke foi até o Twitter responder o movimento: “Oi rapazes, eu sou a esposa de Darwyn e eu posso garantir que ele achava que vocês idiotas do ComicsGate eram um bando de chorões perdedores estragando os quadrinhos. Porque vocês são“.

A resposta, obviamente não agradou a galera do ComicsGate. E assim como no passado já havia acontecido com Chelsea Cain e Heather Antos, agora quem passou a ser vítima de assédio foi Marsha Cooke.

Se algo bom pode ser tirado dessa situação, foi que finalmente a comunidade dos criadores de quadrinhos pareceu levar o movimento ComicsGate a sério. Até então, fora casos pontuais de autores que sofreram ataque, não haviam manifestações tão contundentes.

Mas agora, em defesa de Marsha Cooke, a comunidade em peso se manifestou em sua defesa. Alguns dos comentários mais importantes foram dos criadores Bill Sienkiewicz (Novos Mutantes), Tom Taylor (X-Men Red) e Jeff Lemire (Sentinela), que reproduziremos aqui:

O depoimento de Bill Sienkiewicz (tradução do site Nebulla):

Para os comicgaters – mas também: para meus amigos e colegas de profissão. Preparem-se para o que vou falar. Estejam avisados.
Para começar.
Eu estou convencido de que foram os quadrinhos que ME escolheram como praticante, emissário, o que quer que seja — ao invés do contrário. Talvez por isso, eu veja outros criadores da mesma forma. Seja qual for o real motivo pelo qual as pessoas criam quadrinhos, contam histórias, vivem nesse mundo, ainda é um chamado maravilhoso. Criadores são família, cada voz é única e necessária.
Dito isso, os quadrinhos definitivamente não escolheram o tal Comicsgate para promover essas mensagens de ódio, misóginas e horríveis. Não, esses ‘gaters’ trouxeram essas coisas terríveis por conta própria.
Para ser honesto, eu não entendo vocês. Vocês são tão inseguros, têm tanto medo de dividir o espaço criativo com alguém que tem mais estrogênio que vocês, a ponto de sentir sua masculinidade e estilo de vida ameaçados? Muito heróico da sua parte. Eu até pediria para vocês me explicarem isso, mas sinceramente, o que eu ouvi de vocês até agora já me deixa entediado, além de irritado. Eu odeio bullies. Covardes.
O que vocês estão promovendo não é algo divino e criativamente indispensável, vocês só estão sendo babacas. São um clã, um saco cheio de idiotas. Seja qual for o nome que vocês se dão, não são os Vingadores. São apenas babacas.
Quadrinho não é o clube do bolinha. Não é “(insira aqui grupo étnico, gênero, religião e orientação sexual) NÃO SÃO PERMITIDOS”. É um lugar de encontro para criadores de todos os tipos. Como uma Legião de Super-Heróis da vida real, ou a Liga da Justiça. Apenas com caneta e tinta e notebooks e…
Parem de ser aqueles tios racistas e misóginos que aparecem em reuniões apenas para desaprovar de tudo. Parem de ser o primo esquisito que o mundo inteiro aponta para mostrar o que é o estereótipo do “nerd que ama quadrinhos”. Ou façam isso longe de nós. Parem de bancar as vítimas incompreendidas, reclamando de favoritismo, espalhando intolerância e machismo. Vocês são apenas racistas chorões. Vocês estão certos sobre o fato de algumas mudanças precisarem ser feitas, começando por vocês se olhando no espelho.
Então parem de ser esses embaixadores do pior da natureza humana. Parem de ser idiotas sem noção. Parem de ser machistas que só sabem falar bobagem para qualquer mulher que encontram.
Ninguém chamou vocês para serem os maiores babacas possíveis.
Parem com isso.
Melhorem ou caiam fora.
Nós, dos quadrinhos, a audiência, estaremos ótimos sem vocês.
Ninguém sentirá falta.”

O depoimento de Tom Taylor:

Eu Acredito que quadrinhos são para todos.
Não há desculpa para assédio.
Não há lugar para a homofobia, a transfobia, o racismo ou a misoginia na crítica dos quadrinhos.

Apesar de simples, a fala de Taylor resume muito bem a situação e deixa bem claro o seu posicionamento. Inclusive, ele tem trabalhado muito bem a intolerância nas páginas da sua atual revista, X-Men Red. O seu tweet, de tão impactante, acabou viralizando.

Boa parte dos escritores, desenhistas, editores, letristas, coloristas e demais profissionais que trabalham com quadrinhos passaram a retweetar a declaração.

O depoimento de Jeff Lemire:

Se você não gosta das histórias que esses criadores estão contando, não as compre. Isso é seu direito. O que não  é  seu direito é atacá-los e tentar silenciar suas vozes.
Eu esperava que mais criadores que, como eu, tivessem o privilégio de criar quadrinhos livres desse tipo de abuso e escrutínio, porque somos brancos e somos homens, teríamos nos juntado para denunciae o ComicsGate. Eu sei que muitos de vocês se sentem assim. Percebi que muitos criadores populares e importantes “gostaram” do meu tweet sobre o assunto. E isso é ótimo, mas não é suficiente. Se não pudemos usar nossas vozes para defender a próxima geração de criadores de quadrinhos, editores e a próxima onda de vozes que manterão nosso meio vivo e vital, então qual é o objetivo de tê-los?
Agora é a hora de defender as criadoras de quadrinhos femininas. Agora é a hora de lutar pelos criadores de histórias em quadrinhos trans. Agora é a hora de defender criadores de cor e de todas as orientações sexuais, raças e religiões. Se não fizermos isso, não merecemos continuar fazendo os quadrinhos.

A partir de então, uma enorme discussão tomou a internet, com os criadores se manifestando fervorosamente nas rede sociais. Alguns proeminentes nomes que também abordaram o assunto foram: Gail Simone (Dominó), Neil Gaiman (Sandman), Gerry Duggan (Guardiões da Galáxia), Jordan White (Editor da Marvel), Chelsea Cain (Harpia) e muitos outros.

ComicsGate ridicularizados

No início de setembro de 2018, mais polêmica foi implementada pelo ComicsGate. Passaram a criticar a escritora Eve Ewing recém contratada pela Marvel para escrever a revista mensal da heroína negra Coração de Ferro. De acordo com os preconceituosos, o fato da autora não ter experiência nenhuma escrevendo HQs, é um problema.

A crítica, que catalisa suas atenções em Eva, é muito mais profunda. A reclamação é que a Marvel tem contratado profissionais sem experiência, apenas com o viés de agenda política. Outro autor que entra junto na reclamação do movimento é Ta-Nehisi Coates, que atualmente é o responsável pelas publicações do Pantera Negra e Capitão América, mas que começou a escrever quadrinhos apenas em 2016. Até então, seu currículo envolvia “apenas” ser o correspondente da revista The Atlantic, escrevendo sobre cultura, questões sociais e políticas.

Quase que imediatamente em que os ativistas do movimento passaram a usar esse argumento para criticar a Marvel e demais editoras com essa prática, os criadores do mercado como um todo novamente se reuniram para blindar a galera nova do mercado.

Quase todos os criadores usaram as suas redes sociais para contar como ganharam seus primeiros trabalhos com histórias em quadrinhos e como foram contratados por editoras como a Marvel e a DC sem ter experiência na área. Desmontando assim, qualquer argumento do ComicsGate.

Afinal, experiência por experiência, Neil Gaiman era um autor da literatura e em sua primeira investida nos gibis escreveu um clássico chamado Sandman. O que difere Gaiman de Eve Ewing? Ela é formada em Sociologia da Educação, tem doutorado em Harvard, tem pesquisas sociais e escreve livros de prosa. Ela merece menos uma oportunidade para se provar nos quadrinhos?

Obviamente que nesse momento do texto eu estou me fazendo de sonso. Todo mundo sabe que o ComicsGate pegou no pé da Eva apenas por ela ser uma mulher negra. Assim como o Ta-Nehisi também é negro e sofre com críticas semelhantes. A escritora trans, Magdalene Visaggio (Cristal), também entra nesse barco. O que Neil Gaiman tem que essas pessoas não tem? O combo de ser um homem, branco e hétero.

A culpa é do Neil? De forma alguma. Inclusive, Gaiman se juntou no Twitter para expor a falácia do movimento, mostrando que ele também foi contratado para escrever quadrinhos sem nenhuma experiência. Teve até quem tentou discutir com o escritor, querendo saber mais do que ele próprio sobre o seu currículo.

Da maneira mais amável possível, isto é tolice ignorante. Eu fui contratado pela DC sem ter publicado qualquer quadrinhos ainda, com apenas  3 contos publicados. Eu tinha formação em jornalismo, então eles sabiam que eu entendia os prazos. Mas eles gostaram dos meus arremessos + meu entusiasmo, e eles me deram uma chance.

Minha primeira história em quadrinhos publicada foi para a Marvel. Foi também o primeiro roteiro de quadrinhos que escrevi. Eu tinha vencido um concurso. Nossa indústria tem zero necessidade de autores renomados. Como sempre, ele precisa de vozes frescas, não importando de onde esse pessoal surge ou como chegam no mercado.

Eu era o autor do romance espetacularmente menos vendido, A Once Crowded Sky. (o enorme estoque da Amazon ainda está disponível, estão tentando vender o material por 1 centavo!). Eu tinha provado ao mundo que eu não poderia vender livros em uma taxa quase alarmante.

Não importa como você entrou no mercado das histórias e quadrinhos. Se um determinado grupo decidir que a forma que você entrou não é a correta, eles vão continuar a te atacar. Eu entrei a forma mais tradicional imaginável + escrevendo histórias totalmente neutras por anos. Eu fui acusada de “Jihad Stealth” a partir de então.
Quando eu estava chegando, os quadrinhos mais evidentes e flagrantemente políticos eram conservadores. Bill Willingham aprovou a política militar israelense nas páginas de fábulas. Frank Miller referiu-se abertamente ao terror sagrado como propaganda. TenNapel tinha um alienígena crucificado em CreatureTech. Ninguém questionou.
Sabe o que fizemos? Debates de boa fé. Eu tenho grandes memórias de conversas que tive com o Bill em que eu tentei entender o seu posicionamento (e não) para mudar sua mente sobre qualquer coisa. Lembro-me daqueles tempos com carinho. Sabe por quê? Ele nunca tentou arruinar a minha carreira. Nunca tentei arruiná-lo.
É por isso que estou profundamente desconfiada do enfoque deste debate como “apenas tentando manter a política fora dos quadrinhos.” Porque se essas políticas eram boas e as atuais não são, não se trata de manter a política fora dos quadrinhos. Trata-se de manter as pessoas fora dos quadrinhos.

Porém, mesmo com tantos comentários infames e desbancando totalmente a argumentação falha do ComicsGate, o escritor que deu a melhor resposta foi o Chip Zdarsky (Marvel 2-em-1).

Entrei na Marvel à moda antiga: minha prima era casada com o editor

Apesar de parecer inicialmente bobo, o comentário diz respeito a forma como Stan Lee entrou na Marvel.

A única reação possível após tanta humilhação. O Jameson representa os criadores de HQs e o Peter a galera do ComicsGate.

Marvel e DC contra o ComicsGate

Antes de prosseguir, tenho de registrar que tem uma pegadinha no título do texto e nesse subtítulo. Até o momento em que escrevo esse texto, nenhuma das duas editoras se manifestou oficialmente sobre o ComicsGate, então não se trata da Marvel e DC estarem juntas de uma forma oficial, mas calma aí. O título não foi gratuito, siga a leitura.

Após todas essas polêmicas já citadas, Joe Quesada surgiu. O atual Chefe-Criativo da Marvel possui um dos maiores cargos dentro da editora, ele é superior ao Editor-Chefe. E o que ele fez com a galera do ComicsGate foi louvável.

Quesada se deu ao trabalho de responder todos os comentários dos ativistas, rebatendo todos os argumentos e desmontando qualquer fake news. E para iniciar isso, reproduziu uma carta escrita por Stan Lee, em 1970, onde o lendário roteirista fala sobre política nas histórias em quadrinhos.

Tradução:

De tempos em tempos nós recebemos cartas de leitores que perguntam o porquê de tanto moralismo em nossos gibis. Eles fazem grandes esforços para afirmar que os quadrinhos deveriam ser uma leitura de escapismo e nada mais.
Mas de algum jeito, eu não consigo enxergar dessa maneira. Para mim, uma história sem uma mensagem, mesmo que subliminar, é como um homem sem alma. Na verdade, mesmo nas literaturas mais escapistas de todas – os antigos contos de fadas e lendas heroicas – continham pontos de vista morais e filosóficos.
Em todo campus de faculdade em que vou para palestrar, eu encontro tantas discussões sobre guerras, paz, direitos civis, e a chamada juventude rebelde quanto nas nossas revistas da Marvel.
Nenhum de nós vive em um vácuo – nenhum de nós se mantém inabalado por eventos do nosso cotidiano – e esses eventos moldam as histórias que escrevemos da mesma forma que moldam as nossas vidas.
É claro que nossos contos podem ser escapistas – mas só porque algo é feito para divertir não significa que precisamos cobrir nossos cérebros enquanto lemos.

O texto do Stan Lee foi escrito em 1970, mas parece que ele acabou de escrever, não?

Quesada foi bastante contundente nas suas respostas aos ativistas do ComicsGate. Esclareceu que não são todas as revistas da Marvel que possuem discussões sociais, que o argumento é propositalmente exagerado e por isso não faz o mínimo sentido. A Casa das Ideias publica sim revistas que propõe discussões, porém tem muitas que não possuem esse viés.

Ele ainda se deu ao trabalho de trazer dados para acabar com a falácia de que a Marvel publicada títulos de diversidade em demasia. Para tanto, pegou como exemplo o mês de novembro, onde apenas na linha principais de super-heróis, 70 revistas serão publicadas. Desse total, cerca de 51 correspondem a a HQs sem nenhum tipo de discussão social no seu mote principal. Já as outras 20, dependendo do seu ponto de vista, poderão ser encaradas como publicações com discussões sociais. Aplicando uma matemática básica, 50 é mais do que o dobro de 20, correto? Joe também apontou que a mesma lógica deve valer para a DC Comics, ele não tem como confirmar, mas brincou que o número lá de revistas sem “pautas SJW” é 52 HQs.

Teve ativista que, inclusive, tentou argumentar que a abordagem das políticas eram muito melhores na época do Stan Lee e que o roteirista jamais aprovaria o que está sendo feito atualmente. Foi então que Joe Quesada precisou lembrar que Stan está vivo, muito bem e ciente sobre tudo o que se passa na editora.

E quando novos militantes surgiram apontando incessantemente que Stan Lee não aprovaria isso, Quesada usou o sarcasmo: “Ei Michael, obrigado por me deixar saber a sua opinião. Você viu ou vai ver o Stan Lee recentemente? Se você o encontrar, diga que mandei um “Olá”. Eu o vi cerca de um mês atrás, com o Todd McFarlane e o Rob Liefeld, e devemos ter deixado passar o momento em que ele disse isso [que não aprovaria a forma como as HQs atuais estão sendo escritas]”.

Teve quem lembrou também que hoje em dia quadrinhos não são mais para crianças, são para adolescentes e adultos. Quesada concordou, mas levantou um ponto bastante interessante: esse não é um fenômeno novo. Para justificar sua resposta, o Chefe-Criativo apontou a capa da revista Rolling Stones #91, de 1971. Nela temos o Hulk em destaque, uma prova de que há quase 50 anos atrás os heróis Marvel já não eram um hobby exclusivo para crianças.

Joe Quesada voltou a ser irônico nas respostas quando o acusaram de contratar pessoas devido a suas agendas ideológicas para escrever “merdas. Eis a resposta: “Droga de novo! Quem continua vazando meus planos malignos para destruir quadrinhos, para causar o meu desempregado e à falência não só da minha família, mas de todos os meus amigos na indústria de quadrinhos?“.

Outro ponto que Quesada levantou foi que nem todas as HQs são para todas as pessoas. Nós já abordamos isso aqui no site no texto Nem todas as HQs foram escritas para você ler, mas é muito mais interessante ver a afirmação saindo da boca do próprio Chefe-Criativo da Marvel.

Nossas histórias estão sempre abertas para a interpretação, às vezes você pode não gostar do que você leu, pode não se sentir bem com ela por seja lá qual for o problema. Inferno, às vezes eu leio uma história e não é a minha favorita, mas nem todos os quadrinhos que fazemos são para mim.
Mas se é uma história legal eu não diria editorial para não publicá-lo. Publicamos muitos livros em diferentes estilos e gêneros. Exemplo perfeito, quando começamos a discutir trazer os personagens cósmicos de volta na aniquilação.
Eu não era o maior fã desse lado do nosso universo, porque não havia muitos personagens nele que eu pessoalmente pudesse me relacionar, havia alguns, mas não muitos. Talvez se eu tivesse deixado cair algum ácido na faculdade eu teria uma melhor compreensão ;^)
Mas eu tinha editores que se sentiam apaixonados por eles e senti que eles poderiam criar algo muito legal para os fãs. Então eu disse para ir em frente!
Essa série não foi feita para mim, mas como um fã da Marvel havia outros livros que eu poderia ler. E então eles acertaram a mão e pude me identificar como um fã desses personagens.

A conversa de Quesada se estendeu por muitas horas no Twitter, com ele tentando trazer lucidez para líder do CG como John Malin e Ethan Van Sciver, ao mesmo tempo em que alegava que Richard Meyer é um fracassado que lucra promovendo o ódio.

Acontece então que nos dias 15 e 16 de setembro, uma nova situação envolvendo o ComicsGate surgiu. Pipocou na internet uma lista de aposta com os nomes de criadores do meio artístico que poderiam criticar o ComicsGate. Dentre os 16 nomes da lista, aquele demarcado com a maior probabilidade de se manifestar sobre o movimento, acabou se posicionamento ferrenhamente contra o mesmo: Scott Snyder, atual escritor da Liga da Justiça na DC.

Snyder esclareceu que ele é absolutamente contra o ComicsGate, que metade dos alunos do workshop que ele deu para a DC já sofreram ataques virtuais e também explicou o motivo de falar pouco sobre o assunto. “Eu tenho uma política antiga de não dar holofote para toxicidades por aqui. Em vez disso, gosto de usar o Twitter para apoiar os livros, pessoas, valores que gosto“.

Para a surpresa de ninguém, Snyder foi atacado duramente pelos militantes do ComicsGate. Porém, em contrapartida, também recebeu muito carinho dos verdadeiros fãs da DC, que não estão interessados em semear o ódio e preconceito.

E é aí que ocorreu a mágica união da Marvel e da DC. Joe Quesada respondeu um tweet de Snyder chamando o fandom da Marvel para lhe apoiar.

Ei, Scott, nós te apoiamos. Avante, Marvete, sim, eu sei que ele escreve grandes livros do Batman para a concorrência, mas vamos mostrar-lhe um pouco de amor! Somos muitos universos, mas uma única família.

Essa declaração final do Quesada encerra qualquer picuinha entre os fãs. O fascismo, o preconceito, a intolerância, racismo, homofobia, machismo transfobia e todas essas coisas merecem muito mais a nossa atenção do que a eterna discussão de qual mega-corporação é melhor.

Se hoje a Marvel sofre um ataque do ComicsGate, amanhã poderá ser a DC. E precisamos estar unidos. Assim como o Chefe Criativo da Marvel, Joe Quesada, e um dos principais escritores da DC, Scott Snyder, nos mostraram.

Agradecimentos especiais aos nossos redatores John Matos e Jorge Mendes pela colaboração nesse texto.

Redação Jamesons

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