Acredito que a segunda década do século XXI ficará marcada para a história como um dos momentos pioneiros para a discussão da diversidade na cultura pop, mais precisamente no ambiente geek, de nós, nerds. Mas nem por isso devemos começar a falar menos sobre o assunto, pelo contrário. A pauta hoje é sobre a indignação seletiva e como reclamamos quando um personagem “vira” gay e não quando há retrocesso na evolução de uma personagem feminina.
Para exemplificar da forma mais clara possível essa indignação seletiva, vou comparar duas situações distintas envolvendo dois personagens da franquia mutante: Homem de Gelo e a Wolverine.
[Nota do Editor: o texto poderia tranquilamente ser resumido na afirmação de que o pessoal que está reclamando não leu as respectivas HQs. Já abordamos isso no Incrível Fenômeno dos Leitores que não leem as HQs. Mas qual seria a graça de não discorrer sobre o assunto?]
O Homem de Gelo é um dos X-Men originais. Membro fundador da equipe, criado em 1963, o Bobby Drake nunca teve uma história realmente de importante na editora. Enquanto os outros membros originais se destacaram em grandes runs, o Homem de Gelo sempre acabou sendo o esquecido.
Ciclope é o eterno líder, Jean Grey é o coração da equipe, o Fera a alma e o Anjo encontrou na sua forma de Arcanjo uma oportunidade para desenvolver camadas extras. Mas e o Bobby? Qual é a grande história onde ele é fundamental?
Durante o auge de Chris Claremont nas décadas de 70 e 80, não temos Homem de Gelo. Durante a polêmica fase de Grant Morrison, ele também não possui protagonismo algum. Já em Surpreendentes X-Men de Joss Whedon, nem sombra do personagem. Ele ganha algum real destaque com Jason Aaron em Wolverine e os X-Men, mas, como já falamos, esse é um escritor que foi esnobado pelos leitores.
Provavelmente, se o Homem de Gelo tivesse morrido, ninguém teria sentido a falta dele. Ora, se até o Noturno, que é querido por muitos fãs, morreu em 2010 e pouca gente pareceu se importar, quem sentiria falta de Robert “Bobby” Drake?
Mas a Marvel, em vez de descartar o herói, resolveu fazer algo diferente. O remodelou em um nível no qual ele passou a ganhar um propósito, passou a representar algo. Pela primeira vez, desde a sua criação, ele se tornou algo além de um alívio cômico dentro dos X-Men.
O Homem de Gelo se revelou gay. Na verdade ele não se revelou, Jean Grey o jogou para fora do armário. Isso aconteceu com a versão do passado do mutante, que encontra-se no presente. Porém, se a versão do passado é gay, a do presente também é.
Algumas edições após essa revelação, ocorre o momento em que a versão adulta do herói desabafa e explica todo o seu posicionamento. O motivo que o levou a esconder sua sexualidade por tanto tempo é explicado. Confira:
Como se toda essa explanação não fosse suficiente para mostrar que o personagem pela primeira vez foi importante, se você for um leitor perspicaz, encontrará ao longo dos anos várias dicas sobre a sexualidade do Bobby nas publicações. Olha só essa situação que ocorreu em X-Men vol. 2 #46, lá em 1995. Na sequência, após desconversar, Bobby conta para Jean que quer conversar sobre os seus poderes, mas e se as intenções originais fossem outras?
Existem outras evidências. Mas, claro, isso não significa que o personagem sempre foi concebido como gay. Stan Lee já deu entrevistas dizendo que o personagem foi criado hétero. Mas, até aí, Ciclope não tinha dois irmãos perdidos, Jean não era telepata e o Fera também não tinha pelos azuis, né?
Enfim, mesmo isso dando relevância para o personagem e tendo fundamento dentro da cronologia, teve quem hateou. Teve quem se aproveitou disso para promover discursos de ódio. Teve quem esperneou na internet como nunca antes.
Bom, agora que vocês puderam conferir todas essa situação polêmica do Homem de Gelo, vou lhes apresentar o que está acontecendo com a Wolverine.
Laura Kinney é uma das personagens com o passado mais cruéis do Universo Marvel. Ela é um clone do Wolverine que foi criada em laboratório e desde pequena treinada e manipulada para ser uma arma assassina. Ela passou por torturas psicológicas e físicas.
Apesar disso tudo, ela se libertou dessa programação. Conseguiu fugir e ainda pequena passou a vagar pelas ruas. Fez amigos e teve um background PESADÍSSIMO envolvendo prostituição. Foi nesse período que adotou um visual meio gótico e até emo.
Eventualmente o Wolverine descobriu a existência da garota e a levou para o Instituto Xavier. Só que ela tinha gravíssimos problemas para se relacionar e confiar em outras pessoas. Ela não gostava de ninguém e por ter esse comportamento, também ninguém gostava dela.
Só que tal qual o Logan, a partir desse convívio familiar com os X-Men, ela passou a se transformar. Criou laços, fez amigos, se relacionou. Ficou independente, começou a viver as suas próprias aventuras, criar a sua história. Até entrou para a Academia dos Vingadores.
E Logan passou a exercer uma função paterna na sua vida, ele foi muito importante para essa construção de uma Laura Kinney que não era uma arma programada para matar. Assim que ele acabou morrendo, ela adotou o manto de Wolverine para si.
Quis a ironia do destino que a história se repetisse. Laura foi clonada, sim, um clone do clone. Uma dessas suas versões mais jovens é Gabby. Ela possui apenas uma garra retrátil e não sente dor física. Ela acaba se juntando da Laura e ambas passam a viver juntas.
Laura se tornou para Gabby aquilo que um dia o Wolverine foi para ela. Laura Kinney, a Wolverine, agora também passou a ser uma figura materna. Nesse processo de conhecer a sua versão mais jovem, ela teve de enfrentar muitas coisas do seu passado e cresceu MUITO com isso. Compilo abaixo algumas sequências que demonstram isso.
Laura agora é a Wolverine, X-23 é um número que representa todo aquele horror do seu passado. Algo que ela já enfrentou e superou.
Muito bonito tudo isso, né? Pois é. Mas a Marvel, dentro da sua iniciativa Fresh Start, divulgou semanas atrás que a Laura voltará a atender pelo nome de X-23.
Um claro retrocesso em tudo o que a personagem passou a representar. É como pegar o amadurecimento que ela recebeu nos últimos 3 anos e jogar tudo no lixo. O artista Mike Choi divulgou algumas imagens conceituais de quando ele estava bolando o novo visual da X-23:
Como podem ver, mais deprimente ainda. Um retrocesso conceitual e visual na heroína. Ela voltará a adotar o título que representa tudo aquilo que ela mais odeia no mundo e também voltará a se vestir de forma semelhante ao que fazia quando tinha 10 anos de idade e perambulava pelas ruas sozinha.
Mas, para ser bem sincero, Choi foi muito coerente nas suas redes sociais. Divulgou essas artes conceituais e explicou o motivo de ter pensado em cada uma. Apresentou o que ele pretendia mostrar e quais as reflexões que isso causou. O resultado final é que ela usará um uniforme semelhante ao penúltimo da imagem, mas com algumas alterações. Ficamos no aguardo.
Mas aqui entra o ponto-chave disso tudo. Você viu alguém abrir a boca para reclamar disso? Algum tópico foi aberto no grupo de discussão que você participa para reclamar desse retrocesso? Viu os grandes portais repercutirem? Seu Youtuber favorito gravou vídeo pra reclamar? Pois é.
É por isso que a indignação é seletiva. O Homem de Gelo se revelar gay é um problema, mesmo fazendo sentido e sendo bom para o herói, afinal, é um herói LGBT a mais nos quadrinhos. Já Laura retornar aos visuais e nome que usava enquanto se prostituía está ok, né? O machismo está apenas na cabeça das pessoas, aparentemente.
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