Aviso para os Políticos e a Justiça Brasileira: “quadrinhos não são apenas para crianças”

Vivemos um momento único e extremamente negativo no Brasil. O Prefeito do Rio de Janeiro tentou, na quinta-feira, censurar uma revista em quadrinho da Marvel Comics que apresenta um casal homossexual.

Nesse texto nós apresentamos toda a ordem cronológica dos eventos, com o posicionamento de diversos envolvidos e também esclarecendo o que é verdade e o que é fake news.

A situação envolvendo a censura estava resolvida, pois a Bienal do Livro havia conseguido uma liminar ainda na sexta-feira, na Justiça do Rio de Janeiro, que impedia a Prefeitura de fiscalizar e realizar buscas e apreensões de materiais com a temática LGBT no evento.

Momento da fiscalização na Bienal do Livro. Foto: Fernanda Rouvenat / G1.

Mas agora no meio da tarde de sábado, 07, o Presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o Desembargador Cláudio de Mello Tavares, conforme o portal G1, decidiu mandar recolher as obras da Bienal que tratam de temática LGBT voltadas para o público jovem e infantil, que não estejam com embalagem lacrada e com advertência para o conteúdo, sob pena de apreensão dos livros e cassação de licença.

O desembargador argumenta que a sua decisão não se trata de censura “impedimento ou embaraço à liberdade de expressão, porquanto, em se tratando de obra de super-heróis, atrativa ao público infanto-juvenil, que aborda o tema da homossexualidade, é mister que os pais sejam devidamente alertados, com a finalidade de acessarem previamente informações a respeito do teor das publicações disponíveis no livre comércio, antes de decidirem se aquele texto se adequa ou não à sua visão de como educar seus filhos“.

O portal O Estado de São Paulo repercute também que o mesmo desembargador, em 2009, em uma ação afirmou que a “homossexualidade é um desvio de comportamento” e que “deve ser reprimida, não divulgada ou apoiada pela sociedade“.

Ação de 2009 do mesmo Desembargador que permitiu a o recolhimento de conteúdo LGBT na Bienal do Livro. Foto: Reprodução.

Apesar da fala do Presidente do TJ/RJ, não há legislação que aborde a classificação indicativa em capas de livros ou quadrinhos no Brasil e a presença de personagens homossexuais também não é proibida pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

Quadrinhos são para crianças?

O ofício entregue pela Prefeitura à Bienal do Livro durante a fiscalização de sexta-feira aponta, de forma errônea, que quadrinhos de super-heróis são um produto voltado para crianças.

A nota da Prefeitura fala exatamente o seguinte:

Obras dedicadas ao público infantil e adolescente que contenham histórias ou cenas de homotransexualismo, quando aparentemente veiculadoras de histórias que tradicionalmente não contenham esse tipo de abordagem, como as de heróis, induzem a erro o leitor e seus responsáveis, faltando com o dever de lealdade a quem tem o livre direito de expressão e, neste sentido, de opção sobre suas leituras ou a de seus filhos, de modo que, além do lacre, deverão advertir do respectivo conteúdo.

Uma linha de raciocínio tão equivocada quanto foi usada pelo desembargador para tomar a decisão de derrubar a liminar. A sua fala foi exatamente essa:

“[…] em se tratando de obra de super-heróis, atrativa ao público infanto-juvenil, que aborda o tema da homossexualidade, é mister que os pais sejam devidamente alertados, com a finalidade de acessarem previamente informações a respeito do teor das publicações disponíveis no livre comércio, antes de decidirem se aquele texto se adequa ou não à sua visão de como educar seus filhos.”

As duas linhas de raciocínio partem da premissa de que quadrinhos, sobretudo os protagonizados pelos super-heróis, são uma mídia dedicada ao público infantil. E ambos não poderiam estar mais errados.

Quadrinhos são uma mídia plural, voltada para todos os públicos. Diversas editoras ofertam no Brasil e no mundo uma infinidade de conteúdos que agradam os públicos mais diferentes possíveis.

Há material voltado para crianças que estão aprendendo a ler, outros para jovens que estão em fase de crescimento, para adolescentes e também para adultos. Há também materiais para todas as idades.

A variedade é tanta que mesmo dentro dos quadrinhos de super-heróis, há materiais voltados para crianças, jovens e adultos e apenas para adultos. Os materiais que envolvem pornografia e ou violência explícita são destacados na capa com uma classificação indicativa. Não é o caso, no entanto, de revistas que apresentam cenas simples como um casal homossexual se beijando, isso não se enquadra como pornografia, assim como um homem e uma mulher se beijando também não se enquadra.

Uma editora como a Marvel Comics possui milhares de personagens, cada um com uma abordagem específica. O Homem-Aranha é um herói tradicional com um senso de responsabilidade, mas o Justiceiro é um vigilante violento que mata brutalmente os criminosos, por exemplo.

Tá, então quadrinhos não são para crianças?

As histórias em quadrinhos ainda hoje sofrem com o estigma de que são um material voltado para o público infantil, essa perspectiva talvez ocorra devido a suas obras serem muitas vezes usadas como porta de entrada dos jovens para a leitura.

Entre 1970 e 1985 os quadrinhos americanos entraram na Era de Bronze, onde alguns conceitos maniqueístas foram sendo deixados de lado para que a narrativa dos quadrinhos se tornasse mais complexa e profunda.

“Em contraste com o anterior, esse foi o período em que se abordou temas mais polêmicos, controversos, como o uso de drogas, preconceitos sociais e raciais. Houve um “abrandamento” do CCA, reflexo da ebulição social nos Estados Unidos com a contracultura, o movimento hippie, a luta pelos direitos civis dos negros.”

(Bruno Andreotti, 2017).

O CCA mencionado foi uma espécie de código de ética que os quadrinhos americanos tinham de seguir. Uma medida que censurava as revistas, não muito diferente do que está ocorrendo nesse momento no Brasil, com o diferencial de que isso surgiu nos Estados Unidos na década de 50, ou seja, há 70 anos atrás e há pelo menos uns 30 anos ele não é mais usado.

Foi entre as décadas de 70 e 80 que o vilão ou antagonista deixou de ser simplesmente uma pessoa malvada, esses personagens ganharam argumentos e características humanas que passaram a nortear as suas atitudes. Em alguns casos, o vilão passou a ter um ideal, que pode causar uma identificação junto ao leitor tão profunda quanto os heróis.

O fato de os adultos terem aos poucos se tornado o público alvo das histórias em quadrinhos de super-heróis, nos Estados Unidos, foi algo que incomodou o escritor Alan Moore, um dos maiores quadrinistas do mercado, que falou a respeito em entrevista ao jornal britânico The Guardian em 2013.

“Odeio super-heróis. Acho que eles são abominações. Eles não significam mais o que costumavam significar. Eles ficavam originalmente nas mãos de escritores que ativamente expandiam a imaginação de seu público, formado por crianças de nove a 13 anos. Eles faziam isso muito bem. Hoje, os quadrinhos de super-heróis não tem nada a ver com essas crianças de nove a 13 anos. É uma audiência formada geralmente por homens, de 30, 40, 50, 60 anos. Alguém criou o conceito de graphic novel. Os leitores se agarraram a ele, interessados em uma maneira de validar seu contínuo amor pelo Lanterna Verde ou Homem-Aranha sem parecer de alguma forma emocionalmente subnormal. Eu não acho que o super-herói significa nada de bom. Acho bastante alarmante ver adultos assistindo ao filme dos Vingadores e se deliciando com conceitos e personagens criados para entreter crianças de 12 anos dos anos 1950.” (MOORE, Alan, 2013).

(Alan Moore, 2013).
Alan Moore é o escritor de obras emblemáticas como V de Vingança e Watchmen, por exemplo.

No Brasil, a maior referência em histórias em quadrinhos é Mauricio de Sousa, criador da Turma da Mônica. O grupo Mauricio de Sousa Produções desenvolve dezenas de histórias em quadrinhos e já tem o seu sucesso consolidado há quase 60 anos. Porém, vale destacar, mesmo a Mauricio de Sousa Produções já investe em um público mais adulto, com a linha Graphic MSP, onde diversos autores e artistas são convidados para trazer visões únicas e distintas sobre os personagens da Turma da Mônica.

Mauricio de Sousa inclusive também usou as suas redes sociais para se posicionar contra a censura que a Prefeitura do Rio de Janeiro está promovendo na Bienal do Livro.

https://www.instagram.com/p/B2GCOhWD2O2/

Ta, mas eu ainda não entendi: quadrinhos não são mesmo para crianças?

O que estamos querendo mostrar aqui é que quadrinhos são para crianças, mas também são para adultos, assim como também são para adolescentes.

Uma pesquisa realizada pelo Professor, Pesquisador, Arquiteto e Quadrinista Rapha Pinheiro no início de 2019, com 3500 respostas, trouxe uma luz sobre o perfil do leitor brasileiro de quadrinhos atual.

O vídeo em que o Rapha apresenta toda a sua pesquisa você pode ver abaixo:

Um dado muito importante que ele apresenta por base na sua pesquisa e que é relevante para o atual debate é o seguinte: a média de idade do leitor brasileiro é de 27 anos.

O estudo também relaciona que o consumo na fase adulta se deve ao poder aquisitivo das pessoas. Pois depois que começam a trabalhar, elas tem mais condição para comprar aquilo que lhes interessa.

Quadrinhos é tão infantil quanto futebol

O escritor Peter David, que já fez história escrevendo personagens como o Hulk na Marvel e o Aquaman na DC, no início desse ano usou o seu blog para postar um texto mostrando por qual motivo afirmar que quadrinhos é coisa de criança está errado. Na ocasião ele rebateu Bill Maher, um apresentador de TV americano que afirmou que quadrinhos são coisas para crianças de 10 anos.

Peter David é o criador do Homem-Aranha 2099, uma versão futurista e latina do super-herói.

Confira o texto na integra:

Bill Maher nos informou, tanto no Twitter quando em seu programa, que histórias em quadrinhos são para crianças e que os fãs são basicamente palermas incapazes de aceitar a vida adulta.

Então vamos falar sobre fãs.

Fãs amam discutir. Gostam principalmente de discutir quem seus heróis podem derrotar. E ocasionalmente eles se reúnem em multidões que às vezes ultrapassam cinquenta mil pessoas. Eles pagam taxas altíssimas para entrar e muitos se vestem como seus favoritos. Onde se reúnem, eles se empolgam com seus favoritos, se emocionam juntos, comem e passam o tempo juntos. Eles compram muitas mercadorias, gastando centenas de dólares de uma só vez. Se forem sortudos, conseguem autógrafos e vão para casa felizes. Caramba, em algumas ocasiões especiais eles até comparecem a desfiles dedicados aos seus heróis.

E eu estou falando dos fãs de times de beisebol, futebol e basquete.

Caramba, Bill Maher até lucra com isso, uma vez que ele comprou uma ação minoritária de um time em 2012.

E todos esses jogos… envolvem bolas. Não é interessante isso? Bolas grandes, pequenas, umas que pulam, outras que são atingidas, outras arremessadas. Bolas, que são, – como você deve saber – um dos brinquedos favoritos dos bebês.

E ainda assim, ninguém, nem mesmo o Bill Maher que lucra com isso, acusa os fãs de esportes de serem infantis. Ou de serem adultos “crianções”. Encha um bar cheio de fãs brigando sobre quem vence entre dois times de beisebol e ninguém dirá algo como “Meu Deus, vê se cresce.”

Isso porque, como Neil Gaiman apontou, se você têm histórias que são contadas apenas com palavras, então elas são livros e isso é coisa de adulto. Se tiverem apenas imagens, então é arte, o que também é para adultos. Agora, a partir do momento que você une as palavras e as imagens, alguns babacas acreditam que isso é entretenimento voltado apenas para crianças.

Eu já disse isso antes, mas vale a pena repetir: histórias em quadrinhos não são infantilidades. Histórias em quadrinhos são mitos modernos. A definição de mitos é algo que é definido por sua própria essência. Se você pergunta para alguém “Quem é Gomez Addams?” eles irão responder “Ele é um personagem criado por Charles Addams.” Se você perguntar “Quem é o Superman?”, as pessoas provavelmente responderão “Ele é um super-herói, o último filho de Krypton, cuja identidade secreta é Clark Kent.” Da mesma forma, se você perguntar quem é o Hércules, as pessoas responderão que ele é o filho semideus de Zeus. As pessoas que acham o Homem-Aranha o máximo são tão adultos quanto quem estuda lendas arturianas. O fato de que isso acontece em tempos modernos e que conhecemos seus criadores não os torna menos míticos.

Nem o sucesso multi-bilionário de seus filmes são provas de seu atrativo em crossovers, segundo Maher. “Eles são todos iguais!”, ele declara, afirmando que TODOS os filmes de quadrinhos são sobre super-heróis lutando por “coisas brilhosas” (como atletas brigam sempre por uma bola, lembre-se). A resposta curta é ‘Ah, tá! Pantera Negra é igualzinho Mulher-Maravilha (nenhum dos dois tem algo brilhante envolvido)’. A resposta longa é ‘Ah, tá! Super-heróis brigando por coisas brilhosas é uma descrição bem correta de MIB – Homens de Preto; ou Estrada Para Perdição; ou Kingsman – Serviço Secreto; ou V de Vingança; ou Do Inferno; Ou 300; ou Sin City – A Cidade do Pecado; ou Anti-Herói Americano; ou Atômica; ou Ghost World – Aprendendo a Viver; ou Dredd; ou Scott Pilgrim Contra o Mundo; e vários outros.

Mas, Maher continua a insistir que gibis não são literatura. Bem, vamos tentar desvendar isso. O dicionário define literatura como: trabalhos escritos, especialmente aqueles considerados de mérito artístico superior ou duradouro. E o que é mérito duradouro? Parece sensato assumir o óbvio: algo que dura. Que transcende gerações. Então Action Comics #1, que foi produzida há mais de oitenta anos, ainda tem impacto, parece satisfazer essa definição, assim como o Homem-Aranha, criado há mais de 55 anos. Mas talvez devêssemos ir além. Talvez literatura precise ser aclamada pela crítica. Como Watchmen foi quando venceu o Hugo (prêmio para obras de ficção e fantasia). Ou como Sandman, quando ganhou o Prêmio Bram Stoker (que premia obras de terror). Ou como Maus, quando venceu o Pulitzer (maior prêmio do jornalismo).

Quantos Pulitzers você tem na sua estante, Bill?

Eu não estou revoltado com o Maher porque ele veio falar mal dos fãs. Só Deus sabe como eu mesmo já fiz isso. Eu estou revoltado porque ele veio falar de coisas que são factualmente erradas, claramente inadequadas e incrivelmente injustas. As palavras dele têm origem na ignorância, e eu espero que ele faça algo, qualquer coisa, para se educar sobre o assunto.

PAD”

As histórias da Marvel sempre refletiram o mundo real

Historicamente a Marvel sempre ofertou diversidade nas suas páginas, a novidade aqui é que aparentemente políticos e a justiça apenas agora começaram a pegar uma HQ nas mãos.

Vingadores – A Cruzada das Crianças, revista que levantou a polêmica, foi publicada em 2010 nos Estados Unidos e em 2012 no Brasil, mas só agora em 2019 que causou polêmica.

A Marvel Comics tem uma relação histórica com diversidade e discussões sociais. São elementos que estão presentes desde o princípio da empresa e que acompanham alguns heróis desde as suas criações. O público infantil, possivelmente não identifica essas características, mas o adulto consegue encontrar nas histórias em quadrinhos do Homem-Aranha ou X-Men, por exemplo, relações com a vida real.

A editora de quadrinhos norte-americana, Marvel Comics, é uma empresa fundada em 1939, quando ainda se chamava Timely Comics. A editora em seu princípio, tal qual era a tendência da época, publicava histórias em quadrinhos de fantasia, terror e ficção científica. Com os sucessos de personagens como Superman e Batman, bem como o início da popularização dos super-heróis, foram criados, dentre vários personagens, o Capitão América. Vale destacar aqui que desde essa época a editora já abordava questões políticas e sociais nas suas páginas, pois na capa de Capitão América #1 de 1941, o herói acerta um soco no rosto de Hitler.

“Em 20 de dezembro de 1940, Capitão América n. 1 chegava às bancas. Contava a história de um garoto esquálido chamado Steve Rogers, que é recusado no alistamento militar e recebe um soro experimental de “super-soldado”, o qual lhe dá massa muscular e permite que ele enfrente quem ameaçar os Estados Unidos. Não era à prova de balas como o Superman, por isso portava um escudo similar à bandeira, combinando com o uniforme patriótico. Fora a participação dos nazistas, Capitão América não fazia grande acréscimo à fórmula que O Escudo, da MLJ Magazine, já apresentara: era mais um inimigo de quinta-colunas, beneficiado pela ciência e trajando a bandeira. Mas os ângulos em variação constante e a ação fluida na arte de Kirby lhe davam vida. Capitão América n. 1 atingiu números próximos aos de Superman: um milhão de exemplares, superando a expectativa geral.”

(Sean Howe, 2013).
Capa da primeira edição da HQ do Capitão América. Foto: Marvel Comics.

Nesse período os principais heróis da editora, além do Capitão América eram Tocha Humana e o Namor. As grandes criações que consolidaram a editora como a Casa das Ideias surgiram apenas na sua fase mais moderna, na década de 60. Foi nesse período que as mãos de Stan Lee, Jack Kirby, Steve Ditko e outros artistas desenvolveram os super-heróis que atualmente são ícones da cultura pop.

E é importante destacar, que já nessa fase, é possível identificar como os personagens eram representativos para a época. Em 1962 surgiu o Homem-Aranha, herói adolescente e que era órfão, teve um tio morto devido a violência urbana, foi criado pela tia, precisou lidar com enormes dificuldades financeiras e ainda sofria bullying na escola.

Peter Parker, o Homem-Aranha, sofrendo com o bullying na escola. Foto: Marvel Comics.

Em 1963 foi a vez dos X-Men, os personagens são mutantes, uma raça derivada dos humanos e capitaneados por dois líderes com ideologias diferentes, Charles Xavier e Magneto, que de forma sutil, são uma analogia com a situação dos negros nos Estados Unidos e os movimentos sociais que eles travavam na época em busca dos seus direitos. Tanto que Magneto e Xavier se encaixam como representações de Malcolm X e Martin Luther King.

Em 1964 foi criado o Demolidor, um super-herói com deficiência visual. E assim, ao longo dos anos, a Marvel foi moldando os seus personagens, sempre refletindo o mundo real.

Histórias em quadrinhos são um negócio rentável, entretanto, atualmente os rendimentos dessa mídia estão aquém do que já foram no passado. Para fins comparativos, Marvel Comics vol. 1, de 1939, apresentando personagens como Tocha Humana, Namor Anjo, Ka-Zar e outros vendeu 80 mil exemplares e recebeu uma segunda impressão, que vendeu mais 800 mil cópias.

O autor Sean Howe, no livro Marvel Comics História Secreta, revela ainda que os criadores recebiam, na época, 25 dólares para produzir a revista que tinha um custo unitário de 10 centavos. O exemplo acima corresponde a uma das principais HQs da Timely Comics (que mais adiante passaria a se chamar Marvel Comics) e que mostra de forma bastante clara como os quadrinhos estão inseridos dentro da indústria cultural, e partimos da ideia de que o “cultural” do termo “não se trata de cultura feita pela massa para seu próprio consumo, mas de um ramo de atividade econômica, industrialmente organizado nos padrões dos grandes conglomerados típicos da fase monopolista elo capitalismo(DUARTE, 2003).

Nos quadrinhos, na metade do século XX, descobriu-se que o que estava atraindo um máximo de compradores eram os super-heróis. Sean Howe (2013), comenta brevemente sobre a criação do Superman, o primeiro super-herói dos quadrinhos e que pertence a concorrente, DC Comics, mostrando como na prática a indústria cultural produz aquilo que o consumidor deseja: “O personagem era uma mistureba de tudo o que as crianças gostavam – heróis dos pulps, ficção científica, mitos da Antiguidade – em um só esplêndido pacote nas cores primárias”, o herói ainda representava todos os ideais positivos da sociedade e enfrentava vilões, ladrões, corruptos e tudo o que representasse o mau.

A Marvel Comics, assim como outras editoras que publicam histórias em quadrinhos, lançam semanalmente novas histórias nas comic shops americanas.

Apenas exemplificando, em uma semana saem as aventuras dos Vingadores, Capitão América e do Hulk, na seguinte dos X-Men, Thor, Wolverine e Viúva Negra, na outra são publicadas histórias do Quarteto Fantástico, Homem de Ferro e Homem-Aranha e essa estratégia já dura algumas décadas.

Os principais heróis da editora surgiram nos anos iniciais da década de 60, entre 1962 e 1963. Os personagens já estão quase completando 60 anos de publicações ininterruptas, o que consagra a Marvel Comics como a detentora da maior mídia continuada da história.

E com tantos escritores escrevendo os super-heróis, como é possível manter a relevância desses seres que vestem roupas extravagantes e pulam entre os prédios salvando vidas? Umberto Eco, em um capítulo chamado O Mito do Superman, explica que ao mesmo tempo em que novas aventuras são lançadas semanalmente, sempre trazendo novidades para as histórias, elementos fundamentais dos mesmos são mantidos e intocados.

São padrões nas suas caracterizações e contextos que permitem uma fácil e rápida identificação por parte do leitor. O mesmo se repete em diversos outros heróis, da mesma forma que o altruísmo é uma característica dominante do Superman, também é do Homem-Aranha, Capitão América, X-Men, Vingadores e muitos outros. E são esses padrões que inserem os quadrinhos na indústria cultural e na cultura de massa. Kellner (2001), fala sobre como os filmes mais populares referenciam situações da sua época, e essa mesma visão pode ser atribuída aos quadrinhos.

“No cinema, por exemplo, há uma divisão em filmes de horror, de guerra, musicais, comédias etc. com suas próprias convenções, formas, temas, e que tais. Os gêneros populares inspiram-se nas preocupações da época e tão origem a ciclos que tentam emular o sucesso das produções populares.”

(Douglas Kellner, 2001)

Podemos perceber isso, nos quadrinhos, com o exemplo na cama em que o Capitão América aparece já na sua estreia dando um soco no rosto do Líder Nazista Hitler. O super-herói foi criado bem no período da Segunda Guerra Mundial, e era um soldado que enfrentava nazistas. Howe (2013) aponta que essa iniciativa da Marvel a diferenciou da concorrente, DC Comics.

“Enquanto Superman, Batman e outros heróis continuavam enfrentando aliens, vilões fantasiados e ladrões de banco, as estrelas mais vivazes espalhafatosas e raivosas da Timely já puxavam a manguinha para combater vilões reais da Segunda Guerra Mundial (…) A guerra na Europa, porém, estava ganhando novos tons: a França havia tombado, e a ameaça de o mando nazista espalhar-se pelo mundo começou a entrar na cabeça dos norte-americanos. O Capitão América estaria focado em uma só missão: derrubar o Terceiro Reich.”

(Sean Howe, 2013).

O autor Gerard Jones, no seu livro Homens do Amanhã: geeks gangsters e o nascimento dos gibis, deixa claro como o Capitão não apenas representava uma tendência atual da época, a Segunda Guerra Mundial e o combate ao comunismo, como também influenciou jovens e adultos.

“Steve Rogers se arrasta por um laboratório secreto, todo magrelo e curvado, até receber uma injeção contendo o soro do super-soldado, que faz dele um Adonis. Mas ele continua se fazendo de bobo, e só revela sua imensa coragem quando enverga o uniforme do exército e se torna, na pele do Capitão América, a corporificação dos próprios Estados Unidos. Ele é o garoto subnutrido do gueto que adquire uma força destemida ao agarras as oportunidades americanas; o ressabiado sobrevivendo do velho país que renasce como judeu combatido graças à mistura americana de violência e liberdade. E, através desta paixão imigrante, Simon e Kirby capturam todo o despertar patriótico: os Estados Unidos provincianos a caminho de se tornar uma potência mundial. O Capitão América, assim como o Superman, tornou-se símbolo de uma fantasia juvenil universal. Fantasia que no fundo era também dos adultos.”

(Gerard Jones, 2006).

A influência do Capitão América era tanta, que a HQ era distribuída entre os soldados e até enviada para o exterior, sendo usada como material motivacional. Carlos Patati e Flávio Braga, no Almanaque dos Quadrinhos: 100 anos de uma mídia popular, contam que muitas tiragens do Capitão América foram compradas pelo governo, que as distribuía aos “soldados franzinos”, para que se inspirassem no herói enquanto combatiam na guerra. Ou seja, desde a década de 40 os quadrinhos são consumidos por adultos, inclusive por soldados na guerra.

Essa influência de um produto cultural sobre a ações do indivíduo, seja nas histórias em quadrinhos do Capitão América influenciando os jovens a se alistar no exército ou mesmo dando-lhes energia para combater na guerra, muito se assemelha ao que Douglas Kellner (2001) destaca, quando aponta as influências do filme Rambo, de 1982, no comportamento social durante o período posterior a Guerra do Vietnã.

Para o autor, Rambo se tornou “uma figura controvertida da iconografia e do discurso cultural e político dos Estados Unidos”, pois as pessoas imitavam Rambo, seja nas roupas ou no comportamento e até consumiam produtos com o personagem. Nada muito diferente do que quase quarenta anos antes, em 1941, já ocorria com o Capitão América das histórias em quadrinhos. Inclusive, o mesmo apoio político que Kellner descreve que Rambo providenciou ao governo, ao ser uma propaganda ao militarismo, o Capitão América também deu, lá na Segunda Guerra Mundial.

Sobre a Guerra do Vietnã, personagens da Marvel como o Justiceiro, Coisa, Wolverine e outros participaram dela.

Durante a década de 70 teve a Blacksploitation, onde surgiu por exemplo o Luke Cage. Também nos anos 70 teve a explosão de produções envolvendo artes marciais, foi quando heróis como Punho de Ferro e o Mestre do Kung-Fu foram criados.

Então nada mais natural do que atualmente, em uma época onde já evoluímos o suficiente para compreender que a homossexualidade é algo natural e que não deve ser demonizada, personagens LGBT ganhem mais espaço.

Inclusive revistas que abordam pautas como o feminismo (que defende a igualdade entre mulheres e homens) e que são protagonizadas por um casal lésbico foram recentemente indicadas a prêmios nos Estados Unidos devido a sua qualidade.

Uma das HQs mais elogiadas da história recente da Marvel é X-Men: Equipe Vermelha, que aborda o impacto das notícias falsas e do ódio atualmente. A HQ carrega uma mensagem de empatia muito bonita.

Com essa tendência, revistas protagonizadas por mulheres, negros e personagens LGBT começaram a ser mais constantes nos catálogos das editoras. O mesmo vale para as equipes criativas de escritores e desenhistas que estão cada vez mais diversos.

O catálogo da Marvel atualmente é muito variado, contendo material para crianças pequenas que estão sendo inseridas na leitura, HQs para jovens e adultos e também conteúdo voltado exclusivamente para maiores de idade.

O padrão de classificação indicativa da Marvel:

All Ages – Material aconselhável para todas as idade.
– Material recomendado para a maioria dos públicos, mas talvez os pais devam conferir a HQ antes de dar para os filhos.
T+ – Material destinado para jovens de 13 anos ou mais.
Parental Advisory – Material destinado para jovens de 15 anos ou mais. Se diferencia do T+ por abordar assuntos mais maduros.
Explicit Content – Material destinado para maiores de 18 anos, podendo conter nudez e/ou violência explícita.

No Brasil apenas as publicações que apresentam violência explícita ou pornografia trazem um aviso de classificação indicativa para maiores de 16 ou 18 anos, conforme rege o ECA. Não é o caso da revista Vingadores – A Cruzada das Crianças ou a grande maioria do material lançado pela editora aqui no Brasil.

Mas e você, caro leitor, o que pensa sobre toda essa situação envolvendo a censura de quadrinhos com temática LGBT no Brasil? Deixe a sua opinião nos comentários.

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